ARTIGO – Marco de Março. Por Marli Gonçalves

Animated-Calendar-MarchA impressão que dá é que nem começou ainda. Há uma efervescência e infelizmente não é cultural. Março é sempre mês quente, e não é só pelo verão que vai se mandando. Muita água ainda vai rolar, literalmente, e literalmente é bom que role mesmo porque vamos precisar muito dela para acalmar os ânimos laterais.

Tem tanta coisa que acontece e outras tantas que já aconteceram em março, boas e ruins, que tornam este mês muito especial, tanto a ponto de ganhar uma obra-prima musical que descreve o seu outono, como a escrita por Tom Jobim em Águas de Março.

Mês contraditório do é ou não é, do anda e do desanda, e por aqui pelo Brasil muita coisa já desandou justamente em março. O louco é que também muito se andou em março, por exemplo 21 anos depois, quase conseguindo marcar a libertação do que nos foi tirado em um último dia de um outro março. Mas onde morte e nascimento se misturam seguidamente, e onde parece haver uma dicotomia para tudo, abrindo desvios, a doença de Tancredo adiou a data dessa festa lá em 1985.

E de lá até hoje a gente vem vindo com o que tem à mão, com o que pode, o marimbondo de fogo; com um que surgiu com olhos esbugalhados de messias, mas traiu e caiu; com o topete mineiro que de novo levantava uma esperança, sucedido por um intelecto mais refinado, e que depois também se esvai dando lugar ao que deveria ter sido, enfim, o utópico, o revolucionário, social, justo, mas se mostra até hoje, antes de mais nada, muito pobre de espírito. Pelo que vemos agora pobre só de espírito.

march-clip-animated-clipart-1.jpgNós, querendo enterrar os fios pendurados que enfeiam nossos horizontes, e eles plantando postes. Nós, querendo de novo mudar, e eles contando histórias para os bois dormirem, principalmente em dias de votação, e nessas histórias mentiram, mas mentiram tanto, mentiram muito, mentiram até sobre os que ouviam suas mentiras, e que acabaram assim percebendo que mentiras eram.

Na história que não queremos que se repita, milhares de pessoas ouviram num 13 de março, lá em 1964, na Central do Brasil, o inflamado discurso de João Goulart propondo reformas de base. Antes do final de março daquele ano, outros milhares foram às ruas assustados, e crendo numa ameaça comunista acabaram literalmente nos jogando em braços armados e fardados e afundando, aí sim, no mais vermelho dos mundos, mas não o de uma bandeira; o vermelho do sangue dos nossos que durante anos escorreu das prisões, dos porões, da tortura, da censura, do controle, da morte.

E ousavam falar que agiam em nome de Deus, da família e da liberdade. Mas impuseram foi a moralidade que lhes convinha, a dose de liberdade que os deixava confortáveis, e – não, Deus não deve ter podido ver tanta barbaridade que foi praticada em seu nome.

Cá estamos nós de novo em um intrincado março. As situações são completamente diferentes, vale dizer, deixar bem claro, embora as forças de esquerda estejam se apegando à tese de que quem não está com eles vira salgadinhos de rotisseria, embora sejam eles que estejam mais enrolados do que croquetes, numa massa que prepararam para se perpetuar no poder, pouco se importando com a farinha que usavam para isso, alegando que dessa farinha outros já haviam se empanado.

serpent_012Está difícil. Não dá para viver tranquilo numa terra rachada pelo maniqueísmo. Onde estão as soluções? Do que nos adianta o discurso inflamado da jararaca de rabo pisado que, diante de amestrados, desafia ameaçadoramente que lhe cortem a cabeça se quiserem suas escamas? Desafia autoridades, que xinga em praça pública, em tom de desacato?

Do que nos adianta um governo paralisado, do qual não se sabe de mais nada que consiga fazer de bom, além de trapalhadas, a não ser se defender ele próprio do indefensável que é revelado todo santo dia desde um março de dois anos atrás, quando começou a Lava Jato, a este março agora, quando chegou ao ápice, de prender, mesmo que por horas e usando outro nome magnificamente tucano, de condução coercitiva, o líder máximo? E no março que tantas contradições traz, que dizer ao ver a chefe eleita sair correndo para beijar a mão, afagar a cabeça e consolar aquele que é suspeito e investigado pelas autoridades que, ao fim e ao cabo, ela comanda, chefia? Muita coisa fora do lugar para um povo só, exposto a uma plateia infernalmente mundial e globalizada.

Aliás, ainda bem que eles estão vendo, porque se a gente fosse contar ninguém acreditaria. Muito menos se contássemos também sobre a pândega oposição incapaz de nem ao menos criar um fato para manter a bola no ar. Pândegos, falastrões que adoram se reunir, para decidir fazer alguma outra reunião que nada produz.

Sim, tem gente do mal, muito mal, tentando se aproveitar de mais esse delicado março. Sim, precisamos ir às ruas mesmo assim para demonstrar que estamos com pressa de mudança sob pena de nos atrasarmos muito para embarcar no vagão da história. Sim, tem muita gente boa, e com fé surgirão líderes melhores do que estes que se nos apresentam, bastardos inglórios que nos mortificam de vergonha quando aparecem na festa. Sim, batamos panelas, palmas, façamos barulho, mas não nos enganemos nem com os gatos pardos, nem com as farinhas do mesmo saco.

Que nesse março o pau e a pedra não sejam o fim do caminho. Mas apenas o mistério profundo, o queira ou não queira.

Cat_FailSP, março de 2016

Marli Gonçalves, jornalista 25 de março comemora a primeira Constituição brasileira (1824). É também feriado no Ceará porque nesse dia ali foi abolida a escravatura. Shakespeare marcou para o dia 11 de março o casamento de Romeu e Julieta (1302). Em 20 de março de 1969, John Lennon e Yoko se casaram. Em um março de outrora sobrevivi a quem queria por amor me subjugar, e neste março meu pai faz 98 anos; sei que não gostará de ver ninguém se matar e brigar pelo que ele já cansou de me dizer que não vale a pena. E olha que ele já viveu para ver.

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50 anos do golpe. Saiba mais, por quem viveu de frente o momento. Almino Affonso lança “1964”, nesta segunda, 31, em São Paulo

Foto: Meu querido amigo Almino Affonso, lança na proxima segunda (31), sua grande obra literária, "1964".
Será na Cultura do Conjunto Nacional, Av. Paulista,  às 18 hs.  Prefácio é do Fernando Morais.  
Noite de feras!

 

Quem me conhece melhor, a mim e à minha trajetória, sabe que trabalhei – com muito orgulho – durante quase quatro anos, como assessora de imprensa do então vice-governador do Estado de São Paulo, Almino Affonso (Governo Quércia). Fui, vejam só, porque ele assumiu o governo no período  algumas vezes , a primeira mulher no cargo de imprensa no Palácio dos Bandeirantes, nas priscas eras do período de 1986 – 1990. Poucas vezes, mas fui. Se eu achar umas fotos depois publico.

Devo a ele, Almino Affonso,  o muito o que sei a respeito desses dias horríveis vividos há 50 anos por gente como ele, João Goulart, Leonel Brizola e outros, os primeiros exilados do regime. Adorava ouvi-lo contar – e ele conta tudo com memória extraordinária e brilho incomum, o que me fazia se pudesse ficar horas a ouvi-lo, esse que é ainda para mim tido como um dos maiores oradores do país.

Imbatível.

Assim, esse livro se transformará em peça fundamental para quem quer entender o que ocorreu no período. Mas para quem quiser entender mesmo, sem linguajar chulo, nem pedido de volta de militares, que isso não tem cabimento. Apenas ignorância.

O que eu penso a respeito desses 50 anos, escrevi semana passada. Em primeira pessoa, e com  a memória de uma criança de 6 anos. Leia AQUI.

Ouvi tudo quanto é impropério, e inclusive até de leitores queridos, mas que estão tão putos com o que estão vendo agora – com razão, está um horror –  que ficaram cegos e pedem a volta de militares, de um tipo de golpe de Estado.

Mas eles estão errados, pensando com o fígado. Por isso não respondi a ninguém. E olha que fui chamada de petralha, vendida, comuna, jornalistazinha…só para citar alguns adjetivos que me deram esses últimos dias, principalmente quando e enquanto  acreditaram que iam conseguir fazer aquela marcha ridícula com sucesso. Mas o bom senso ainda prevalece, gracias!

Também recebi – a maior parte – elogios e menções que muito me honram, de pessoas que admiro sobremaneira, de todas as áreas do conhecimento.

Essa semana escreverei sobre esse horrível sentimento nacional que está embotando as mentes, a fúria.

Enfim, aguardo vocês e todos os amigos lá no Almino.

Eu vi a PUC resistir à ditadura. Ajudo a lembrar de sua importante atuação. Dedico à memória da ex-reitora Nadir Kfouri

50 anos do golpe civil-militar de 64

brazilC_animadobrazilW_animadoA PUC-SP resistiu. A PUC-SP lembra.

japanflagA PUC-SP realizará uma campanha na internet (site e redes sociais), no dia 31/3, para marcar os 50 anos do golpe que instituiu a ditadura civil-militar no Brasil. Com o mote #LembrarÉResistir, slogan da Comissão da Verdade da Universidade, a ação recordará o protagonismo da PUC-SP na oposição ao governo ditatorial e a tortura institucional que ela sofreu como consequência desta posição.

A campanha pretende impactar a comunidade interna de alunos, professores e funcionários, e a própria sociedade, para fazer do dia 31/3 um dia de silêncio e reflexão sobre os fatos que completam 50 anos e a ditadura de 21 anos que se seguiu. Quatro episódios serão rememorados: a invasão do campus Monte Alegre por tropas da PM, em 1977; os dois incêndios do Tuca, em 1984; o apoio ao movimento estudantil e à realização da reunião anual da SBPC, em 1977, que havia sido proibida de acontecer em universidades públicas; a acolhida a professores aposentados compulsoriamente nas universidades públicas a mando do governo.

Tanto o site (http://www.pucsp.br) quanto as redes sociais da PUC-SP (http://www.facebook.com/PUCSP.Oficial e http://instagram.com/puc_sp) irão suspender as publicações normais, fazendo referência apenas a estes quatro eventos.

No Twitter (https://twitter.com/puc_sp), serão publicados textos (preparados pelo professor Luiz Antonio Dias, do Depto. História) relacionados à movimentação política do dia 31/3, explicando o golpe hora a hora.

Para a PUC-SP, recordar estes tristes episódios é resistir ao esquecimento e uma maneira de sensibilizar a sociedade para que o arbítrio político, a violência de Estado, as torturas e a falta de liberdade nunca mais se repitam.

Não deixe esquecer: #LembrarÉResistir

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ARTIGO – 50 anos da maldita e o resto de nossas vidas. Por Marli Gonçalves

brazilW_animadoQuem sabe, sabe. Quem não sabe, tem más intenções ou é burro mesmo, é que se sacode. Não estou gostando nadica de ver esse montinho de gente tentando reviver, mesmo que em pesadelo, um período tão pavoroso de nossa história. Pior, tentando botar Deus na roda. Aceite esse depoimento pelos olhos de uma criançabrazilB_animado

Nasci em 1958. Faz as contas aí. Então, em 1964 eu tinha só seis anos e nessa época de março daquele ano era apenas uma menininha pentelha, de Maria Chiquinha, indo para a escola pela primeira vez, abrindo berreiro (é, antes a gente não ia para a escola assim que saia da maternidade como agora).

agirlieDito isso, recorrerei necessariamente a uma forma muito pessoal para relatar o resultado, o clima e o tanto de mal que causou esse estrupício do golpe de Estado que o Brasil tomou na cabeça há 50 anos; esse buraco em que fomos jogados e que se reflete até hoje nesse nosso infeliz subdesenvolvimento, não só social, como político e econômico. Ainda hoje, 50 anos depois, minha memória de criança e, depois, de adolescente, se reativa com pequenos relances que certamente também marcaram você e o resto de nossas vidas. Se é jovem, nem me venha com muxoxos de “eu ainda não tinha nascido” – saiba que nada mais foi como antes e essa sombra da barbárie tão imortal como os vampiros nos aterroriza e suga até hoje. 50 tons de cinza, sem prazer de sexo; só o sadismo, que foi se infiltrando quando pintou de verde oliva o espaço político, dizendo-se em prol do nosso “bem”. Aqui, ó!

Da minha memória, ali na Rua Augusta, por onde minha mãe me arrastava para eu ir à escola, lembro do ambiente pesado, que só foi piorando à medida que eu fazia o primário. Antes era mais ou menos assim: pré-primário, um ano. Primário, 4 anos. Ginásio, 4 anos. E aí vinha o “Clássico” ou o “Científico”, já que o “Normal”, que formava as professorinhas, já começava a entrar em decadência. Em 1969 quando o caldo entornou de vez me preparava para minha adolescência. Não esqueçam que foram praticamente 20 anos de sofrimento, quase 20 anos totalmente de censura, maldade, mortes, torturas, exílios, desinteligências.

peace_rain_b_animadoAcredite: é daí que se acentua essa cultura que ainda temos, de corrupção, desmandos policiais, esquerda X direita – coisas que foram jogadas como sujeira para debaixo de um tapete que ainda teimam em levantar de vez em quando. Uma sujeira indelével.

Outro dia mesmo, revirando alfarrábios, achei os livros de Educação Moral e Cívica que éramos obrigados a decorar, capítulos inteiros de “organização política e social”, como era descrito. Enormes. Carregávamos para lá e para cá. Normas, ordens, ditames. E toma Hino Nacional entoado com a mãozinha pra trás todos os dias no pátio. Ai de quem saísse desse círculo de soldadinhos.

Quanta coisa não li, não aprendi, não pude conhecer, saber, viver. Nunca chegou aqui. E como tudo tem seu tempo, muito disso o pessoal de minha geração não conseguiu recuperar.JaneHunter-peace-can-you-dig-it

Relembro ainda que em casa, todas, tudo era meio sussurrado, e nossos pais, creio, temiam que se ouvíssemos algo, comentaríamos na escola, alguém ouviria, e a coisa poderia ser vista como conspiração. Vivíamos assustados. Até o nome de nossos bichos papões eram diferentes: era General isso e aquilo, um tal de Fleury. Qualquer batida na porta podia ser polícia. Se eu vivi isso, e meus pais não tinham nada de ativistas, imagino o que passaram outras famílias.

(A música era a Jovem Guarda, a Bossa Nova, o Fino da Bossa, os festivais da canção, protestos em forma de vaias).

A coisa só foi piorando e aos 11 anos, já em outra escola e morando em outra rua, as tais sombras nos envolveram de forma ainda mais tenebrosa. Vi amigos mortos pela Rota 66. Em uma semana matavam o Marighella que ainda fui ver, caído e baleado em um Fusca, na esquina de cima, cercado por homens que, para mim, em minha memória, usavam xadrez, paletó xadrez. Já devia até ter um pouco de jornalista no sangue, coisa que puxei de minha mãe, sempre curiosa. Tanto que dias depois, da janela ela assistia sem querer ao tiroteio, na esquina de baixo, em um dia de feira. Era o “justiçamento” (a esquerda chamava assim) de Henning Albert Boilesen, do Grupo Ultra, financiador da repressão que comia o couro de quem enfrentasse a ditadura.

Bombas explodiam. Deixadas em esquinas, enviadas pelos Correios. Ameaças eram comuns, alcaguetes se criavam como ervas daninhas. Primeiro prendiam, depois arrebentavam, depois perguntavam. A tirania, o desrespeito.

PEACRDLW_animadoFoi esse ambiente que, porque nasci em um ano de glórias, 1958, enfrentei. Não é de admirar que com pouco mais de 17 anos eu também já estivesse na luta, pelos direitos das mulheres, pela anistia ampla geral e irrestrita, pelas eleições diretas, pela volta dos que foram, com o movimento estudantil, nessa que foi a segunda fase antes do fim da ditadura. Menos cruel, e até mais vitoriosa porque levou, enfim, à abertura.

31 de março de 1964 não é data que se comemore. É data para que nunca mais, nem em pensamento, nada daquilo retorne, aconteça o que acontecer. Nosso país já nunca mais será o mesmo, nem que se retorne à gloria de uma seleção campeã, que possa se sobressair.

Perdemos 20 anos de nossas vidas, que não voltam jamais. Nem para quem ainda nem nasceu.

São Paulo, 2014 ARROW_animado

Marli Gonçalves é jornalista Escreveu esse texto com um terrível aperto no coração.

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