ARTIGO – Crueldade. Por Marli Gonçalves

Crueldade

Por Marli Gonçalves

jail 4Nunca se falou tanto em prisão, disso, daquilo, de um, de outro, coercitiva, temporária, preventiva, o escambau. Nunca se viu tanta gente desejar, sorrir, aplaudir, soltar fogos, dar gritinhos de prazer, comemorar a prisão de outras pessoas que nem conhece mas para as quais deseja o pior possível. Será que se tem noção do que é uma prisão, como deveria ser, qual sua função?

mao apontando direita[Atenção, aviso: esse texto não tem o objetivo de defender ninguém, corrupto, corruptinho, corruptão, colarinho branco ou colorido. Muito menos o de fazer proselitismo político de qualquer linha, babar para qualquer juiz, entrar para a direita ou esquerda. É uma crônica em que se tenta refletir. Só que qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real não é mera coincidência. ]mao apontando esquerda

A liberdade é o maior bem que existe. Ah, sim, é. É o que pode haver de mais valioso ao ser humano. Não só: creio que aos pássaros e aos animais a liberdade também tenha valor imensurável. Nada de gaiolas, jaulas, redes, gradis, cercas, ausência de luz, do Sol e da dimensão do tempo, das horas, dias e anos. E como os animais são a princípio sempre inocentes, ao contrário dos malvados humanos, sua detenção pode ser ainda muito mais cruel. Dependendo de suas espécies, são presos para serem mostrados, alguns como troféus. Alguns, para que cantem.

Não posso deixar de traçar paralelos, chamar a atenção para um ângulo da questão que está contribuindo para que pioremos muito como cidadãos, fazendo com que desçamos muito na escada evolutiva. O que é que estamos fazendo, como autômatos? Ligando a televisão para saber quem foi a presa do dia? Na casa de quem tocaram logo cedo para levar para viajar para um certo lugar? Plantões jornalísticos se formam para ver o avião decolar, helicópteros são usados para acompanhar o comboio policial. Ainda bem que perderam a mania de divulgar diariamente o cardápio como faziam no início.

Na minha lista de amigos nas redes sociais, muito ampliada por causa da profissão, vejo gente que passa o dia e parte da noite teclando impropérios, jogando toda a sua energia para pedir que se aprisione alguém desses que viraram rotina, ricos ou políticos. Os olhos brilham, as palavras pesadas brotam, e eles escrevem quase pedindo justiça com as próprias mãos, tortura, maus tratos. Por eles, desculpem, mas é o que passa, nem comida essa gente deveria receber. Se pudessem jogariam ratos, baratas e serpentes venenosas dentro das celas.

Se pudessem pagariam entrada, como se faz no Zoológico, para ir vê-los, fotografá-los, atiçá-los. As filas virariam quarteirões. Pensam que, como os canários, todos dentro das gaiolas sairão cantando, delatando.

Incomoda que não os vejo, contudo, usando dessa mesma energia para os assassinos de mulheres que estão brotando como nunca em nosso solo, apenas para dar um exemplo da contradição. Especialmente querem capturar o sapo-rei. Querem os peixes grandes, ricos e famosos, as celebridades. Repara como já se assemelham as coberturas jornalísticas de viagem a ilhas e as viagens às prisões e carceragens. O carro da esposa de um, a bolsa da mulher do outro…

Pense no que é uma prisão, o horror, e que gente de bom sentimento não pode se esbaldar com a prisão de outro ser, por mais que esse mereça e aí, se culpado for, punido e condenado for, não há dúvida, ali pagará mesmo por seu crime, porque, repito, é o horror. Não é por menos que vários barris de pólvora andam estourando em todo o território nacional.

Sim, porque visitava conheci bem uma prisão. Um presídio político, aliás, o do Barro Branco, em plena ditadura, onde semanalmente ia ver amigos meus, e era do Comitê de Anistia. Olha que dia de visita era especial. As grades ficavam abertas, e as crianças corriam de cela em cela naquele pequeno espaço, naquele corredor onde cada porta era de uma organização política diferente. Mas da minha mente jamais saiu a visão daquele pátio tenebroso, da privada turca cravada no chão, da frieza e do barulho dos pratos e colheres de alumínio, do olhar triste e melancólico da hora da despedida, do som do portão se fechando atrás de mim.

E olha só que coisa: justamente homens que estavam ali presos porque lutavam – de uma forma ou outra, sim, pelo poder político de visionários líderes – mas que antes de mais nada foram presos quando buscavam alcançar a liberdade que pudesse propiciar à política ter algum poder.

Toda prisão pode merecer ser revogada. Pensa só. Mas com a cabeça, não com o fígado.

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oculos fendiMarli Gonçalves, jornalista – Cadeia para quem precisa. E nem toda nudez será castigada.

SP, 2016

 

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ARTIGO – 50 anos da maldita e o resto de nossas vidas. Por Marli Gonçalves

brazilW_animadoQuem sabe, sabe. Quem não sabe, tem más intenções ou é burro mesmo, é que se sacode. Não estou gostando nadica de ver esse montinho de gente tentando reviver, mesmo que em pesadelo, um período tão pavoroso de nossa história. Pior, tentando botar Deus na roda. Aceite esse depoimento pelos olhos de uma criançabrazilB_animado

Nasci em 1958. Faz as contas aí. Então, em 1964 eu tinha só seis anos e nessa época de março daquele ano era apenas uma menininha pentelha, de Maria Chiquinha, indo para a escola pela primeira vez, abrindo berreiro (é, antes a gente não ia para a escola assim que saia da maternidade como agora).

agirlieDito isso, recorrerei necessariamente a uma forma muito pessoal para relatar o resultado, o clima e o tanto de mal que causou esse estrupício do golpe de Estado que o Brasil tomou na cabeça há 50 anos; esse buraco em que fomos jogados e que se reflete até hoje nesse nosso infeliz subdesenvolvimento, não só social, como político e econômico. Ainda hoje, 50 anos depois, minha memória de criança e, depois, de adolescente, se reativa com pequenos relances que certamente também marcaram você e o resto de nossas vidas. Se é jovem, nem me venha com muxoxos de “eu ainda não tinha nascido” – saiba que nada mais foi como antes e essa sombra da barbárie tão imortal como os vampiros nos aterroriza e suga até hoje. 50 tons de cinza, sem prazer de sexo; só o sadismo, que foi se infiltrando quando pintou de verde oliva o espaço político, dizendo-se em prol do nosso “bem”. Aqui, ó!

Da minha memória, ali na Rua Augusta, por onde minha mãe me arrastava para eu ir à escola, lembro do ambiente pesado, que só foi piorando à medida que eu fazia o primário. Antes era mais ou menos assim: pré-primário, um ano. Primário, 4 anos. Ginásio, 4 anos. E aí vinha o “Clássico” ou o “Científico”, já que o “Normal”, que formava as professorinhas, já começava a entrar em decadência. Em 1969 quando o caldo entornou de vez me preparava para minha adolescência. Não esqueçam que foram praticamente 20 anos de sofrimento, quase 20 anos totalmente de censura, maldade, mortes, torturas, exílios, desinteligências.

peace_rain_b_animadoAcredite: é daí que se acentua essa cultura que ainda temos, de corrupção, desmandos policiais, esquerda X direita – coisas que foram jogadas como sujeira para debaixo de um tapete que ainda teimam em levantar de vez em quando. Uma sujeira indelével.

Outro dia mesmo, revirando alfarrábios, achei os livros de Educação Moral e Cívica que éramos obrigados a decorar, capítulos inteiros de “organização política e social”, como era descrito. Enormes. Carregávamos para lá e para cá. Normas, ordens, ditames. E toma Hino Nacional entoado com a mãozinha pra trás todos os dias no pátio. Ai de quem saísse desse círculo de soldadinhos.

Quanta coisa não li, não aprendi, não pude conhecer, saber, viver. Nunca chegou aqui. E como tudo tem seu tempo, muito disso o pessoal de minha geração não conseguiu recuperar.JaneHunter-peace-can-you-dig-it

Relembro ainda que em casa, todas, tudo era meio sussurrado, e nossos pais, creio, temiam que se ouvíssemos algo, comentaríamos na escola, alguém ouviria, e a coisa poderia ser vista como conspiração. Vivíamos assustados. Até o nome de nossos bichos papões eram diferentes: era General isso e aquilo, um tal de Fleury. Qualquer batida na porta podia ser polícia. Se eu vivi isso, e meus pais não tinham nada de ativistas, imagino o que passaram outras famílias.

(A música era a Jovem Guarda, a Bossa Nova, o Fino da Bossa, os festivais da canção, protestos em forma de vaias).

A coisa só foi piorando e aos 11 anos, já em outra escola e morando em outra rua, as tais sombras nos envolveram de forma ainda mais tenebrosa. Vi amigos mortos pela Rota 66. Em uma semana matavam o Marighella que ainda fui ver, caído e baleado em um Fusca, na esquina de cima, cercado por homens que, para mim, em minha memória, usavam xadrez, paletó xadrez. Já devia até ter um pouco de jornalista no sangue, coisa que puxei de minha mãe, sempre curiosa. Tanto que dias depois, da janela ela assistia sem querer ao tiroteio, na esquina de baixo, em um dia de feira. Era o “justiçamento” (a esquerda chamava assim) de Henning Albert Boilesen, do Grupo Ultra, financiador da repressão que comia o couro de quem enfrentasse a ditadura.

Bombas explodiam. Deixadas em esquinas, enviadas pelos Correios. Ameaças eram comuns, alcaguetes se criavam como ervas daninhas. Primeiro prendiam, depois arrebentavam, depois perguntavam. A tirania, o desrespeito.

PEACRDLW_animadoFoi esse ambiente que, porque nasci em um ano de glórias, 1958, enfrentei. Não é de admirar que com pouco mais de 17 anos eu também já estivesse na luta, pelos direitos das mulheres, pela anistia ampla geral e irrestrita, pelas eleições diretas, pela volta dos que foram, com o movimento estudantil, nessa que foi a segunda fase antes do fim da ditadura. Menos cruel, e até mais vitoriosa porque levou, enfim, à abertura.

31 de março de 1964 não é data que se comemore. É data para que nunca mais, nem em pensamento, nada daquilo retorne, aconteça o que acontecer. Nosso país já nunca mais será o mesmo, nem que se retorne à gloria de uma seleção campeã, que possa se sobressair.

Perdemos 20 anos de nossas vidas, que não voltam jamais. Nem para quem ainda nem nasceu.

São Paulo, 2014 ARROW_animado

Marli Gonçalves é jornalista Escreveu esse texto com um terrível aperto no coração.

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