ARTIGO – Olha a faca! Por Marli Gonçalves

Nossa mais nova preocupação é pontuda, afiada, pode ser facilmente encontrada nos mais diversos tamanhos, e feita de materiais que ainda não são exatamente localizados, identificados, previstos ou apontados em inspeções, como cerâmica, madeira, acrílico, plástico. Está cada vez mais comum saber que foram elas as armas que zuniram em atentados, brigas, assaltos e feminicídios. Tenho verdadeiro pavor delas, que surgem do nada

Tudo bem que até um palito de dente pode ser usado como arma. Ou um dedo apontado, intimidando sob uma camisa. Mas enquanto nos preocupamos tanto com o porte de armas, com sua legalização, com o lobby horroroso pró-indústria bélica, assistimos apavorados diariamente a crimes cometidos com uma das mais simples, terríveis e acessíveis formas: as facas, que estão em todos os lugares, nas cozinhas, fininhas, pequenas, grandes, facões, peixeiras.  As armas brancas, que surgem no noticiário sempre tingidas de vermelho do sangue de suas vítimas.

Acostumamos a chamar de armas brancas quaisquer objetos, geralmente usados para trabalho, que possam ser utilizados de forma violenta, para defesa ou ataque. Tesouras, machados, martelos, canivetes… e facas. Entre muitas outras formas. São cortantes, perfurantes, perfurocortantes, contundentes, cortocontundentes, perfuro-contundentes e perfuro-cortocontundentes. Todas, formas pavorosas. Ou seja, furam, rasgam, picam e retalham o que alcançam. Terríveis, silenciosas, comuns, perigosas, traiçoeiras, aparecem mais rápido do que alguma reação de defesa, inclusive porque usadas já bem no corpo a corpo, num abraço de morte e traição, como em uma ópera de Bizet.

As armas brancas são utilizadas principalmente em conflitos interpessoais e de gênero (feminicídio), este último com alarmante crescimento nos últimos tempos. As facas têm sido também uma das principais armas em atentados malucos ou terroristas nas ruas de algumas das principais cidades do mundo. Aqui, quase levou a vida daquele que viria a ser – talvez até justamente por causa dessa facada – o presidente da República. Jair Bolsonaro foi atacado no meio de um comício nas ruas de Juiz de Fora.

Dizem que quando a gente tem horror ou medo de alguma coisa pode ser trauma de vidas passadas. Sei não, não sei, mas posso ter sido atingida por alguma lâmina em alguma dessas passagens porque tenho verdadeiro horror a elas, as armas brancas, e admito, as temo mais do que às armas de fogo.

A violência está disseminada de forma tão generalizada que até as leis têm dificuldade de acompanhar.  A legislação existe. Está na Lei de Contravenções Penais. Se uma pessoa estiver, por exemplo, com um canivete ou uma tesoura em um ambiente onde isso não é aceitável— um estádio, um cinema – pode ser autuada em flagrante por porte ilegal. Mas, claro, primeiro tem de ser vista. Mas…Pode-se proibir canudos de plástico, mas não as prosaicas e baratas facas de cozinha. Agora também na linda e chique versão das moldadas em cerâmica, de várias cores. Em algum lugar, li que o procurador que recentemente esfaqueou a juíza dentro do Tribunal usava uma dessas; por isso não teria sido detectada no raio-X.

Tudo, enfim, pode ser arma. Até os garfos e as colheres. Até a palavra, vejam só, pode ser mortal, se desferida contra alguém fraco. Pedras atiradas. Estilingues. Flechas. Drones sobrevoam jogando bombas e podem mudar a geopolítica mundial, como também recentemente vimos, atingindo as refinarias de petróleo na Arábia Saudita. Nas mãos de irresponsáveis carros matam diariamente.

Não damos murros em suas pontas. São as cruéis lâminas das facas que entram e saem dos corpos desferidas várias vezes o nosso temor, especialmente agora, para nós, mulheres. Nem sempre elas ficam guardadas nas botas, presas nos dentes, como no vocabulário popular. Nem sempre “Olha a faca!” é bordão de programa humorístico.

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FOTO: Gal Oppido

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano- Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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ARTIGO – Medo. Por Marli Gonçalves

medoA voz de pato, a cara borrada, cada vez mais medo, até para falar de assuntos banais agora há medo, presente, todo dia, toda hora. Qualquer lugar, raça, credo, condição social. Repare. Vivemos aterrorizados e não estou falando exatamente de fobias, dos medões, daqueles que só tratamento psicológico resolve. Trato do nosso dia a dia vivendo num país esquisito, de onde brotam vingadores, odiadores, e onde cruzamos no presente com gente sem passado e sem futuro

Devo mesmo ter morrido em alguma vida passada por golpe de arma branca. Veja só. Sou até capaz de brincar com uma arma de fogo, achá-las bonitas, revólveres, pistolas, fuzis. Manuseá-las sem problemas; com elas convivi desde criança. Mas só de ouvir falar em faca, minha espinha dorsal fica diferente – não sei bem como descrever, mas você já deve ter sentido isso – como se um líquido corresse em direção anormal por alguns segundos. Mais do que o frio na espinha. Sempre foi assim. Cheguei a pensar em fazer esgrima pra ver se ajudava, me livrava desse temor, para você ter uma ideia. Desisti.

Com isso posso declarar que estou absolutamente aterrorizada com o que está acontecendo no Rio de Janeiro e que peço a Deus seja estancada essa “tendência”, que não se espalhe como costumeiramente modas cariocas acontecem. Só esse ano, li em algum lugar, 167 pessoas foram esfaqueadas por lá, em assaltos e desinteligências, palavra de que gosto porque é objetiva no descrever da violência descontrolada.

medo...Mas se fosse “só” isso! Alguém está se dando conta que o medo invadiu de tal forma nossas vidas que está modificando a nossa própria história? O medo, gente, paralisa. O medo atrasa. O medo tira nossa criatividade e espontaneidade. O medo nos torna piores. Muito piores. Arredios. O medo mata. O medo cria, nos hábitos, uma série de círculos viciosos infinitos, infinitos até que chegue o finito, e quando ela chegue, a morte. Espero que “do outro lado” não existam medos.

A crise está nas nossas portas, o medo do desemprego, de precisar de recursos que não há. Não sair porque não pode gastar, mas também por medo de perder o pouco que tem. Viver tenso, de medo de ficar doente e sem condições de tratamento. O medo da violência geral grassando onde não há educação, saúde, estrutura nem infra, nem social, nem ética. Medo da própria família, do abuso da criança, da briga, do ciúme, da traição, da vingança. Do dizer e ser perseguido. Do não dizer e morrer calado, aos poucos.

Medo da facada pelas costas. Mesmo que sem faca, e sem sangue. Muitos de nós já a experimentaram e é terrível, porque nos mostra vulneráveis, porque nos derruba.

Ora, se a criança na escola é estuprada por outras crianças, se o asilo pobre, quase desgraçado, faz um bazar para pedir piedade pelo amor de Deus, e logo depois é assaltado, se quem devia proteger bate e arrebenta, como não ter medo? Do que não ter medo?

Só se for da chuva, do amor, de amar, da borboleta, do compromisso. Dos espíritos das pessoas boas que partiram e que sabemos que deles só podem vir coisas boas e proteção. Até as baratas, aranhas e outros bichos a gente pode dominar.

Mas não podemos dominar os homens, os governos, o poder. Ultimamente, não dá para perder o medo do escuro, de avião, de falar em público, da ameaça de dar uma entrevista para a tevê. Não dá pra deixar de temer o hospital, as agulhas, as facas dos cirurgiões, os ferrões dos pernilongos. Nem a solidão ou seu contrário, as multidões.medicine11

Uma simples faca pode zunir e furar, ameaçar, matar. Acabar de vez com o medo de alguém.

São Paulo, 2015

Marli Gonçalves é jornalista – – Espera jamais ter medo de escrever, nem de voar, principalmente na imaginação. Até para poder se esconder do medo no medo, mas no medo dos montes de areia que viram dunas, e que também se chamam medo.

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