ARTIGO – A loucura do vaivém do tempo. Por Marli Gonçalves

O tempo é mesmo bem louco, e nos damos conta disso, dele, do nosso tempo, de repente, com os tais fatos marcantes, em geral marcado em décadas quando são lembrados ou comemorados, sobre alguém ou de alguma coisa. E – repara só, cá entre nós – está um tal de 40 anos disso, 50 daquilo que, brincando, as ruguinhas saem rolando só de ouvir e de se tocar que você se recorda exatamente daquilo, daquele início ou fim. Viveu para ver.

Why We Remember So Many Things Wrong | The New Yorker

Outro dia me dei conta de quantas coisas já assisti, digamos pessoalmente, no sentido real ou de lembrar exatamente desses fatos, dessas pessoas, do que aconteceu, daquele lançamento, do show que assisti em alguma pinguela. Coisas até para a qual nem se dava muita atenção e algumas que viraram sucesso ou marcas históricas hoje em dia.

Temos o estranho hábito de olhar de fora, como se só os outros envelhecessem, e basta ler alguns comentários nas redes sociais para perceber e, naturalmente, o que é pior, observar o quanto somos bem críticos e até jocosos na forma de como vemos, principalmente as pessoas famosas, algumas até nossas contemporâneas. A voz já não tão nítida de cantores, a pele e os cabelos brancos de alguém, o abatimento de tantos outros, as gordurinhas e mudanças que levaram embora a perfeição dos que eram os mais belos de nossas memórias, essas que até tentam nos reter juntos lá naquele passado.

Pensar o tempo é muito doido. Pode ser maravilhoso para reviver. Mas também dolorido, claro, internamente, para qualquer um de nós, e isso se expande quanto mais vivemos. Cada lembrança traz todo um período de volta. É essa lembrança que a gente descarrega do nosso arquivo pessoal – não é nada só de #tbt, quando publicamos às quintas-feiras alguma boa e escolhida imagem de outrora.

Meninos, eu vi, vivi! Quer exemplos, alguns? 37 anos de Rock in Rio! 40, 50 anos de um monte de coisas, e 50 anos é meio século, traduzido. Nossos ídolos, aqueles, Milton, Gil, Caetano, Jorge Mautner, Tom Zé, mais de 80 anos de vida. Baby, Pepeu, 70 anos, juntos com outros tantos. Titãs, e outras bandas desse tempo que festejávamos, de abertura do sufoco da ditadura, completando 40 anos. Os vimos chegando, vivendo, casando, até várias vezes, tendo filhos, netos, alguns já com bisnetos e até seguindo pelos seus mesmos caminhos. Andam bem comuns apresentações e shows de toda a família junta. Aí, então, é que a nossa própria idade fica pregada, grudada, vendo aquela escadinha de gerações nos palcos, o desenho do tempo.

Na política, a mesma coisa, aliás, em todas as áreas, especialmente para nós, jornalistas, que muitas vezes estávamos lá, documentando todos os acontecimentos de nossa época, convivendo diretamente com os fatos enquanto eles se desenrolavam, vimos ascensões e quedas. (Daí, inclusive, antes disso tudo, quando falamos que certas pessoas, você sabe quem, quais, não prestavam e não prestariam, não estávamos fazendo exercício de futurologia, mas sim informando que brucutu nasce e vive brucutu, não tem jeito; e criam brucutuzinhos. Tá aí a prova).

Pensar o tempo, reviver o que passamos, por outro lado, pode ser muito bom, e até revigorante por demonstrar que ultrapassamos tantos desafios, obstáculos, viradas, perrengues, e a experiência que cada um deles nos trouxe. Fazemos uma rápida revisão de amores vividos, perdidos, mantidos, conquistas, aprontos, boas histórias que dariam um programa inteiro do Fábio Porchat. As coisas que gostávamos, as roupas que usávamos e muitas até estão de novo nas ruas, revisitadas nos jovens; agora as achamos estranhas, eram mesmo revolucionárias, mas só lá naqueles tempos – agora encaretaram de vez, copiadas sem criatividade. Conto eu, ou contam vocês que também são vividos, que há muitas coisas que eram bem, enormemente, mais livres e radicais, não precisa nem lembrar de 68 (e olha que aí eu tinha só dez aninhos…)?

Mas, no fundo, esses dias pensei muito no tempo e em seu peso por acompanhar o terrível desenrolar do caso da Mulher da Casa Abandonada, essa senhora estranha e desarvorada que está vendo seu passado emergir e sua vida ruir mais ainda do que a sua própria casa e sua vida miserável dos últimos 20 anos, foragida do crime de escravizar alguém, certamente remoída de lembranças de tempos áureos e abonados que viveu distraída e que ela própria confessa na entrevista que enfim concedeu ao estrondoso podcast do Chico Felitti, o jornalista que levantou a história toda quase sem querer. Curioso, passeando com seu cachorro diante da casa com ar assombrado, como tantas outras casas ruindo, mansões ou não, paredes e acúmulos de coisas e histórias guardadas nessa cidade de São Paulo, onde o tempo tem o mecanismo da pressa, capaz de escondê-las por décadas até que um dia sejam observadas e contadas.

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Marli GonçalvesMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – O tempo, os cabelos e a gente. Por Marli Gonçalves

Eles começam a pular igual a sapinhos na lagoa em noite de lua cheia. Dá a impressão até que espreitam, surgem justamente na hora que você vai olhar lá no espelho em busca de autoestima, saltam aos olhos só para aborrecer, destoar. Tóiiimm. Olha ele lá, branquinho, diferenciado, mais grossinho, mais seco, fica se mostrando como que fazendo careta, se joga pra fora em atitude suicida. Provoca. Cada cabeça, uma sentença. Eu arranco. Miro, cato, arranco.

Cabelos brancos nascem, são arrancados, voltam. São teimosos e obstinados. Alguns se organizam mais rapidamente, em multidões, para serem invencíveis e tomar posse de vez do que acham que lhes pertence, as nossas humanas cabeças. Sim, eles são ousados, aparecem muito também – e rapidamente – em áreas mais íntimas. No peito de alguns homens, por exemplo. Vamos ficar por aqui que vocês já entenderam. Pelos, cabelos. Trocadilho: será que pelos cabelos podemos mesmo saber quem são as pessoas? Os brancos sempre devem ser respeitados, me ensinaram.

Mas de repente passei a me perguntar: a que se relacionam, como vivem, como se reproduzem, do que se alimentam esses safados? Ah, outra coisa: estresse causa sim cabelo branco, nem vem que não tem – vocês estudiosos só não comprovam isso por preguiça. Em um dia daqueles de barra pesada já tive a clara impressão de ver que eles explodiram, alguns tomaram até fios longos, desafiantes; parecem dizer “Viu? Você não me achou e eu cresci!”. Já reparou nos charmosos cabelos brancos da Renata Vasconcelos no Jornal Nacional? Que assanhados para aparecer no horário nobre? Repara que tem dia que tem mais – certeza de que é dia dela dar notícia cabeluda.

Mas eles – esses branquelos – aparecem principalmente por causa do tempo, da passagem dele, dessa maluca medida de horas, minutos, segundos que é a nossa existência.

Daí, creio, costuma-se associar cabelos brancos à sabedoria, mas não é que esta semana vimos que nem sempre isso é verdade? Naquele balcão de julgamento no TSE algumas cabeças brancas luziam e nem tudo foi sabedoria ali. Teve até cabeça branca ameaçando degolar jornalistas e a coisa ficou por isso mesmo, como se uma fala dessas, vinda de um juiz (e juiz, repito, de cabeça branca de longos fios) fosse normal, aceitável. Napoleão Nunes Maia Filho, nascido em Limoeiro do Norte, Ceará, peixeira imaginária nas mãos, afiada em pescoços de jornalistas, praguejando a ameaça de vingança com a própria faca. Ainda não vi sanção. Nenhuma referência aos de Sansão, aquele que neles tinha a força, mas, traído por uma mulher, um dia acordou sem eles.

Fiquei em dúvida ainda se são ruivos naturais os cabelos do relator Herman Benjamin, o juiz que a mim pareceu até divertir-se nesses dias de julgamento da chapa quente e nos duelos com os demais. Talvez seja vaidosa tintura sobre cabelos brancos indesejados. Ao seu lado, a caudalosa, brilhante e admirável cabeleira negra de Luiz Fux – que certamente deve fazer igual a mim arrancando os teimosos que tentam se destacar mais do que ele. Aliás, que fogueira de vaidades, hein?!?

E teve a ministra Rosa Weber, versão loira, que não sei se é original ou se também encobre os malditos fios brancos. Olha aí, entendi agora o resultado final, foi decisão entre cabelos coloridos versus cabelos brancos que se aliaram a nenhum cabelo e a cabelos em ilhas. Uma questão de cabelos, assim decidida, batendo cabelo como roqueiros. Mostrando, todos, ter cabelinhos nas ventas.

Não riam. É sério esse assunto. Tão sério que numa pequena pesquisa descobri que tem gente que segue dicas engraçadas para acabar com eles. Uma delas seria passar cebola! Sim, cebola. Um suco de cebola, ou mesmo esfregar a cebola no couro cabeludo. Eles garantem que é tiro e queda. Queda de quem se aproximar, dado o cheiro do tal tratamento. Outros dizem que o legal mesmo é passar batata, mais especificamente as cascas, que virariam uma espécie de tintura quando fervidas com óleo de alecrim ou lavanda. Nessa aqui pelo menos indicam que se escolha um aroma do gosto para adicionar em tal poção. Outra coisa importantíssima que descobri: é mito que quando você arranca um, outros sete aparecem. Graças a Deus!

Bom saber que pode dar certo a gente sair por aí arrancando alguns deles de seus postos.

São as relações de tempo, de todo esse tempo que estamos perdendo vendo essas cabeças brancas se digladiando e os fatos se passando incólumes, impolutos, enquanto nos descabelamos para sobreviver.cabelos 2

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marli em redMarli Gonçalves, jornalista – E você, o que está achando de tudo isso?

Brasil, embaraçado, 2017

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