ARTIGO – Dias quentes do Verão de 23. Por Marli Gonçalves

Dias quentes, fervidos, ferventes, fervorosos, agitados. Precisamos justamente de um refresco; por favor, como conseguir? Ainda irão demorar nessa toada de justificativas, enganos, verdades, mentiras, idas e vindas. Agora até um robô entrou na parada: duvido que ele saiba das coisas que fizemos os verões passados

O bafo quente do verão que entra pela janela precede tempestades que a tudo alagam e a gente assiste, dia após dia, o terror de agitados rodos jogando a água para fora de casas e locais esquecidos. Córregos que transbordam sugando carros, casas, vidas. O choro doído das perdas de vidas inteiras de trabalho, esforços e prestações. Sabemos de árvores malcuidadas e constantemente cheias de lixo em suas raízes que despencam nos fins de tarde às dezenas, desverdejando ainda mais as paisagens já pobres das grandes cidades. A repetição é cruel, e tudo é muito próximo, real. Administrações municipais e estaduais se explicam através de notas, promessas, investigações das quais nunca mais teremos notícia e que devem se acumular empilhadas em algum arquivo por aí. Tudo vira rodapé de página, notícia de canto, cara brava de apresentador de tevê com comentário ácido. Quem se importa?

Os olhos se voltam, sim, para as tragédias. Lá longe, passam os corpos frágeis e desmilinguidos, mostrando até os ossos dos yanomamis dizimados por fome, pela contaminação dos garimpos, pela desatenção. E não só com essa etnia, mas com muitas outras que vão se apresentando, e não é hoje. A desgraça dos guaranis, as invasões de terras, o suicídio de seus jovens, o alcoolismo que abate. As meninas grávidas, a malária, o isolamento. Tudo se mistura na passagem do tempo sem alegria, inseguro, dominado.

Os povos originários, as minorias, todos agora ganharam ministérios das questões, encabeçados por aplaudidas personalidades, que sempre foi mais fácil criar cargos, conselhos, espaços e reuniões, muitas, do que objetivamente resolvê-las. Na linguagem atual, os corpos – indígenas, negros, trans, mulheres e mais – ocupam o poder – simbolicamente, mas poderemos ter soluções que se apressem?

Muito falatório e agora, depois da balbúrdia de 8 de janeiro, mais ainda na busca de punição aos responsáveis, seres esquisitos que nas manhãs ainda estamos vendo sendo conduzidos em camburões para se explicarem, como se isso fosse possível. Os maiorais entram e saem pela porta da frente, e continuam por aí disseminando, formando grupos da discórdia, e aparecem as conspirações e atrapalhadas tentativas de golpe, que chamam a atenção para o perigo que vivemos e que tanto pressentimos nos últimos anos. Aliás, muito admira que a palavra golpe ainda não tenha sido ungida a algum patamar, tantos são os que nascem, não só na política. Na vida digital, nos aplicativos amorosos, nos descalabros financeiros que atingem milhões de pessoas, bilhões de reais, nos roubam sossego. Nos roubam o precioso tempo.

O novo governo chegou, já faz mais de mês. Até tenta consertar malfeitos antigos, mas eles não param de surgir, exigir medidas, recursos, e para tudo é necessário negociar com as mesmas enferrujadas e divididas estruturas de sempre, legislatura após legislatura. O sistema. Não bastasse, o novo que não é novo, recomeça com seus velhos discursos, diz e se contradiz, muitas vezes na imposição de uma outra história, a tal da narrativa, a mais manipulada das palavras quando se refere à política.

Verão, veremos algum tempo bom, alguma moda divertida, ou seremos ainda encharcados não de suor, mas de lágrimas de mais perdas impactantes de forma que não sabemos nem bem como explicar, como a de Glória Maria?

Será que precisaremos perguntar como nos refrescar a esse novo monstro, o ChatGPT, que vem sendo cantado em verso e prosa, inteligência artificial, e que se grife continuamente isso: artificial?

Ok. Tentei, mas ele está doidinho da Silva e tem tanta gente – fora me perguntar umas cinco vezes se sou “humana” – fazendo isso no mundo, com alguma solicitação, que não consegui. Entrei numa fila. Fica, então, para uma próxima. Embora seja paulistana, detesto filas, qualquer fila, e muito menos essa agora onde nem ao menos vou ter com quem conversar para me distrair.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Devaneios de Mafalda. Por Marli Gonçalves

Um mundo visto no globo todo emendado, machucado, enfaixado e problemático, com aquela menininha de ar rabugento diante dele, pensando, apontando, observando. Mafalda faz cada vez mais sentido, com suas tiradas, em tiras mesmo que, já antigas, continuam absolutamente atuais. Quem hoje, ontem ou sempre, não teve vontade de abrir o berreiro igual a ela? E quem não quis permanecer no tempo?

MAFALDA

O enorme pesar pela morte, esta semana, de Quino, genial criador de Mafalda, de sua turma e de suas lendárias frases, foi um dos temas que valeram parar um pouco para refletir. Inclusive sobre a atualidade dos seus desenhos, uma vez que doente há muito já não os produzia. Quem escreve gostaria sempre que seus textos fossem assim, perenes, não envelhecessem. Que pudessem atravessar o tempo, mostrando que o autor apontava seu olhar sobre os fatos corretamente. Que em cada um estivesse marcada a vitalidade de seus dias, preservando assim uma quase imortalidade.

Pena que seja tão difícil conseguir isso, principalmente em um tempo de tantas transformações digitais, velocidade, de inseguranças, de um dia após o outro ir apagando os próprios rastros – como se ninguém mais lembrasse do que já ocorreu, e sem qualquer romantismo como o daquele do filme onde o namorado todos os dias precisava reconquistar sua amada que dele esquecia ao dormir.

Todas as manhãs nos deparamos com realidades obrigatórias que nos fazem ou repetir ou esquecer até o que já escrevemos, ou até mesmo pedir que esqueçam, tal a frivolidade e rapidez com que se esvanecem, tanto como os amores vividos, as muitas juras eternas largadas no caminho, as  experiências de tempos atrás que recordamos, melancólicos. Lembrar de muitas nos faz até tachados de saudosistas, além de carregar irônica e pesadamente o envelhecer. De que servem?

Essa aceleração contínua não nos tem feito nada bem. Para cronistas como nós que se apegam aos fatos cotidianos para buscar lhes dar mais sentido, e quando possível até alguma poesia, é uma corrida insana. Sofro dela toda sexta-feira quando, em geral, busco um assunto para conversarmos. Quanto tempo vai durar?

A primeira ideia é sempre procurar algo positivo, que possa transmitir algum otimismo. Nem preciso dizer a dificuldade de encontrar tais fatos nos últimos tempos que nos tem trazido tantos dissabores, dúvidas, medos. Você olha, por exemplo, para a política e o que ela tem provocado, que descrevo como erosão de cérebros e de razão, além de retrocessos inaceitáveis – mas como protestar diante de tanta ignorância e no atual isolamento que nos é imposto em prol da vida?

Sou jornalista, vivo de acompanhar fatos, mas juro que também não aguento mais ler e ouvir comentaristas se repetindo. A melhor crítica, como vemos em Mafalda, ainda vem de programas de humor, eles podem literalmente escrachar situações e assim as mostram para um público mais amplo, o sonho de todo escritor, ir longe atrás de seus leitores, e que estes estejam em todos os cantos onde nem imagina.

Nesse campo da política é fácil fazer sucesso, acredite. Busque um lado, seja grosso, xingue, arrume tretas com Deus e o mundo. Mas para tanto precisa ter costas bem largas, patrocínios, proteção jurídica, o que não é bem o caso aqui no meu pedaço.

Sendo assim, caro leitor, cara leitora, hoje peço vênia apenas para o entendimento de minha perplexidade contínua. Dá vontade de escrever só contando casos que vi. Ou os casos que vivi. Sim, interessantes, mas talvez precisem mesmo esperar um pouco mais para não causar entre os personagens que envolvem. Dá vontade de escrever, claro, e até faço isso de vez em quando, sobre política, sobre esse governo desconexo, com seu conservadorismo burro e que, este sim, deixará marchas na história por longos tempos. Mas fazer isso sem tirar muito sarro deles, é chover no molhado – e eles estão no Poder. Queimando o que podem.

Vou precisar bater um bom papo qualquer hora com alguns amigos que resistem em seus espaços– como Ruy Castro ou o já imortal Ignácio de Loyola Brandão, e que conseguem inspirações de onde menos se espera, e com tanta classe e dignidade.

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MARLI GONÇALVES

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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ARTIGO – Como você está? Na moral? Por Marli Gonçalves

Na moral, andamos há tanto tempo tão longe uns dos outros, sem encontros, sem calor humano nesse mundo digital tão frio e cheio de falsidades, que de vez em quando precisamos mesmo perguntar, inclusive a nós mesmos – e esta precisará ser a resposta mais sincera

MORAL
FOTO SPENCER TUNICK – BRASIL – PARQUE IBIRAPUERA – 2002

Aturdida. Assim eu responderia para você de como é que, pelo menos eu, me sinto no momento, e é difícil de explicar a extensão desse atordoamento. Nada muito sério a ponto de preocupar ninguém, acredite, até porque devo estar na inscrição de número bem mais de um milhão no Clube dos Atordoados, que pode me saudar em uníssono nesse momento. Demorei para achar uma palavra que expressasse esse meu sentimento de forma geral. Talvez você também estivesse procurando alguma definição, essa palavra, e daí revelá-la. Quem sabe ajude…Aturdidas e aturdidos, apresentem-se!

Calma lá que, claro, esse atordoamento tem muito a ver com os desatinos diários da política nacional, que mais para frente podemos dar uma comentada. Não só. Esta, ajuda, mas não é realmente a única razão. Até porque quem já viveu algumas décadas não se surpreende mais tanto com essa gente – só fica esperando o fim da história – e vai ter um fim, acredite. Está demorando, sei. Mas não há mal que nunca acabe.

O atordoamento passa pelo rolar ladeira abaixo que sinto com relação à caretização total que assola os mais variados segmentos da sociedade – o que inclusive explica essa gente do poder, seja de direita ou de esquerda. Quando penso que até em plena ditadura surgiram personagens tão interessantes, revolucionários, livres, como os que inclusive até hoje cultuamos e  alguns que já beiram seus 70, 80 anos (não apareceram muitos outros depois dessa geração), e não são poucos – Ney, Gabeira, Caetano, Lennie Dale, Gil, que a lista é longa.

Na moral? Essa semana foi censurada pelo Instagram uma foto do sertanejo Zé Neto, da dupla com o Cristiano. A foto? Ele, na praia, com a sua super normal esposa. Na praia; portanto, de sunga, e não com aquelas bermudonas horrorosas. Na foto, sem conotação sexual objetiva, posava na praia ao lado da mulher simples assim, transparecia o seu pênis, digamos, avantajado. O que houve?  Foi notícia a semana toda, ganhou 900 mil seguidores a mais. Isso, no Brasil, que eu saiba – se ainda é o mesmo país em que todos vivemos – um país de praia, de gente gostosa, desnuda. O pênis notícia. Melhor do que homem mordendo cachorro.

Acontece que a caretização, igual à pandemia, é mundial. Tem sido comum esse tipo de censura – tenho vários amigos fotógrafos sofrendo com cortes em seus trabalhos – alguns até pueris – nas redes sociais. Chocada fiquei – mais ainda, ao ver – e até fui verificar se estava assim mesmo na origem, também essa semana, fotos de Spencer Tunick, o fotógrafo americano famoso pelas suas fotografias de grandes aglomerações de pessoas nuas e que até já veio ao Brasil, onde fotografou no Parque Ibirapuera ( e eu estava lá, pode ter certeza). Nas fotos que fez em Londres (@spencertunick), as pessoas aparecem nuas, mas com tarjas na frente. Uma destruição do sentido de seu próprio trabalho. Bunda pode, ao que parece. Estas aparecem livres e soltas, gordas, magras, grandes, velhas, novas, bonitas, feias, empinadas, caídas. De frente? Proibido.    

Atordoada, só quero ver até onde vamos com isso. Com a criminalização do corpo humano. Mais, com a criminalização do comportamento humano, da liberdade.

Aqui, onde vamos? Um país que tem um ator do nada como Secretário da Cultura, revoltado porque se fala em vibradores, um religioso Ministro da Educação capaz de proferir (desculpem, mas não há palavra melhor) a seguinte declaração: “Acho que o adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo (sic) tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe”, disse. Sim, ele disse. Ao que se saiba, sem corar.

Cá entre nós, além de tratar a homossexualidade como doença, “opção”, já pensaram o número de famílias “desajustadas” que haveria, só nesse ítem?

Só rindo, tirando um pelo, como se dizia em gíria antiga, mostrando uma banana daquelas bem grandes, mandando-os se catarem. Sem censura.

moral?

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#ADEHOJE – PEGA-PEGA NO SENADO. ENTENDE PORQUE TUDO ESTÁ ASSIM?

#ADEHOJE – PEGA-PEGA NO SENADO. ENTENDE PORQUE TUDO ESTÁ ASSIM?

SÓ UM MINUTO – Antes, salve Iemanjá em seu dia! Não sei se você ficou acompanhando o processo eleitoral no Congresso Nacional. Se não, só perdeu uma espécie de show patético. A cena da senadora Kátia Abreu roubando a pasta do senador Alcolumbre que se atarracou na cadeira fez lembrar aquelas brigas de crianças mimadas. Tiriricas da vida. Até esse momento, começo da tarde de sábado, 2 de fevereiro, os senadores, por exemplo, ainda estão se digladiando. Deram abertura até para a interferência do Poder Judiciário para a retomada do processo agora pela manhã. Na Câmara -óóó, venceu Rodrigo Maia. Surpresa. No Senado, Renan Calheiros usa de todo seu conhecimento interno para se manter no poder se reeleger presidente da Mesa. Esses resultados serão essenciais para o andamento do novo Governo e suas reformas. Onix Lorenzoni pisou no tomate nas duas casas, nos dois tapetes, o vermelho e o verde, e que marcam os lugares do Congresso, em Brasília.

Continuam as repercussões das divulgações das dramáticas imagens que mostram o exato momento do rompimento da barragem de Brumadinho e as consequências e a destruição. Prosseguem os trabalhos de procura dos corpos dos desaparecidos.

 

ARTIGO – Sexo com todas as letras. Por Marli Gonçalves

É um mundo todo colorido, chega a ser extravagante. Tem linguagem própria e até uma entonação especial, em som de vozes às vezes fanhosas que podemos reconhecer rapidamente, embora ultimamente algumas moças fitness também estejam falando no mesmo tom, sei lá se por hormônios ou anabolizantes. É um mundo que sempre existiu, mas estava escondido, e agora quer se mostrar com todas as suas letras, dúvidas, anseios.

Não sei se percebeu, mas os simpatizantes andaram sendo atirados para fora do trem das letrinhas que compõem o movimento pela diversidade sexual. O S sumiu da forma que ainda é a mais conhecida, LGBT. Mas agora tem mais completa, decore: LGBTQIA+.

É tanta variação de identidade sexual possível de existir que andaram decidindo que pode ser tudo isso, mais um asterisco, ou um sinal de +. Senão ficariam discutindo mais e aí não teriam nem tempo para o prazer. Até acabar de falar as letras, a outra pessoa dormiria.

Esse + representa qualquer outra forma que ainda possa, sei lá, surgir dia desses, e não qualificada em LGBTQIA. Tentando traduzir: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros, queers, intersexuais e os assexuados. Mas você pode encontrar referências com todas essas, e ainda com mais letras T, dois Ts; pode encontrar também com o P de poliamor, ou C, de curioso. Pode até encontrar um vagão duplo: LGBTTQQIAAP (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais, queers, questionadores, intersexuais, assexuais ou aliados – simpatizantes – e pansexuais). Qualquer maneira de amor valerá. Amor que agora ousa falar seu nome, com todas as letras.

O importante é que a diversidade sexual realmente tem agora presença e visibilidade proporcional ao aumento da população mundial, à globalização e às inúmeras formas de comunicação e informação que se espalham. A questão está sendo politizada, e a luta por liberdade e direitos civis se ampliou ao se juntar todas essas letras de todas as formas de se viver o próprio corpo e o amor.

Mas ninguém está inventando a roda. Nem o fogo. Apenas aparecendo – mais maquiado, operado, assistido, modificado, aceito, mais abertamente fora de armários, seja qual for o seu tamanho. Abriram-se as portas. Há muita gente inclusive tirando uma boa lasquinha nessa assimilação. Comercialmente está uma festa: é cerveja, aplicativo de transporte, propaganda de cosméticos. Pena que não dão dinheiro para a causa geral, apenas para as estrelas contratadas. Daniela Mercury é uma que fatura muito bem com a sua opção. As outras cantoras da MPB me parecem mais verdadeiras. Enfim…

Para vocês terem ideia do tamanho que a coisa tomou, a Parada Gay de São Paulo é um dos maiores eventos turísticos do país. Calcula-se em 45 milhões de reais o valor que injeta na cidade, e com seus turistas gastando, em média, cada um, R$ 1.500,00. É dinheiro!

Mas o investimento que oficialmente chegou aos realizadores não passou de um milhão e meio. Sei disso porque o organizador cultural este ano foi um grande e querido amigo, Heitor Werneck. Há meses o estou acompanhando; ele se consumindo para trazer coisas boas para a festa, representativas e com caráter social. Por exemplo, o grupo de 50 travestis que tirou da Cracolândia, dando casa e comida e um bom papel para elas ensaiarem um show para a Avenida Paulista. Isso poucos veem e dão valor.

Ainda esses dias assisti, e me emocionei muito, à pré-estreia de Divinas Divas, o documentário dirigido pela atriz Leandra Leal, que revive os áureos tempos do Teatro Rival no Rio de Janeiro e a primeira geração de artistas travestis do Brasil.

Rogéria, Valéria, Jane Di Castro, Camille K, Fujica de Holliday, Eloína, Marquesa e Brigitte de Búzios formaram, na década de 1970, o grupo que testemunhou o auge da Cinelândia e brilhou nos palcos internacionais, especialmente de Paris. Hoje, todas com mais, bem mais de 70, contaram muito do que foram obrigadas a passar, no país em plena ditadura. Ficou claro que para sobreviverem àquela época tiveram de passar a quilômetros da política e da realidade que abatia o país. Recomendo o filme a todos, que talvez dessa lista só conheçam a Rogéria. Cada uma delas tem uma história, trilhou um caminho, nos fazem pensar, e muito, no quão bobagem e perda de tempo é e sempre será o preconceito.

Eu sempre as adorei, desde menina. Sempre fui fascinada por artistas travestis e vedetes que, inclusive, têm tudo a ver entre si. Sempre fiquei maravilhada com o brilho de suas roupas e acessórios, por seu apego às divas, às grandes estrelas de cinema; sempre me encantei pelo seu despojamento, pela nudez tranquila, pelo sucesso que faziam nos palcos com seu talento. Pelos amores que conquistaram mundo afora, algumas até a condessas chegaram, seus amantes milionários. E por tudo que as vi ultrapassarem: agressões, prisões, porradas, mortes.

Foram pioneiros. Era tempo de mais glamour no melhor sentido da palavra. Meio perdido hoje, com todo mundo se enfeitando para participar da Parada com os repetitivos produtos chineses da Rua 25 de Março reproduzindo o arco-íris, a grande imagem que se sobrepõe a todas as letrinhas.

Não tem mais volta, os armários se abriram. É hora de todos aceitarem, dizerem não à homofobia, ajudarem a garantir a todos os direitos de todos. Entender que muitas são suas formas, seus desejos, a conformidade de seus corpos. O que querem mostrar com orgulho, na Parada e em todos os dias de todos os anos, com seus trejeitos e expressões, com saúde, longe da violência que nos tem a todos como alvos.

BANDEIRA

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20170607_194808Marli Gonçalves, jornalista – Uma das coisas que viveu para ver acontecer. Abriram-se as cortinas. Pela janela entrou ar fresco.

São Paulo, semana da Parada de todas as letras, 2017

 

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