ARTIGO – Fênix, o que todos nós somos. Por Marli Gonçalves

Tenho pensado – e, mais do que pensado, a tenho mesmo evocado – na fênix, essa bela ave mitológica cheia de mistérios, de penas vermelhas e outras de vários tons, douradas a sua longa e bela cauda e garras. Símbolo da vida, da morte, e dos inúmeros ciclos pelos quais sobrevoamos. Representa a esperança, e especialmente o fato de que é necessário dar a volta por cima nas situações adversas, e renascer. Nem que seja das próprias cinzas.

Conta-se que as lágrimas da fênix podem curar qualquer doença, ao contrário das nossas que às vezes apenas vertem sem parar, e já nem sabemos porque tão incontroláveis, se escoam para algum rio mágico que carrega nossas mágoas, os desconsolos. Cantada em verso e prosa desde a Antiguidade, desenhada pelos artistas mais requintados, imaginada com toda a sua mágica, a fênix traz em si o sonho da imortalidade, mas também as mudanças que passamos no decorrer dos anos. Nos lembra a vida marcada por queimaduras, os momentos que morremos internamente, e dali, assim como ela, saímos. Nós mesmos saímos daquele ninho em combustão. Ninguém mais. Todos somos fênix.

Ainda era muito menina quando soube dela, a vi em ilustrações e histórias dos livros de fábulas e mitos que acabaram por me ensinar muito da vida, e me encantei. Aliás, sempre me encantei por seres mitológicos, as sereias, as ninfas, Pégaso, os centauros, e até com as malvadas hidras e suas cabeças que renascem assim que cortadas. Gosto de pensar que há um mundo mágico onde as coisas funcionam diferente deste, terreno, trágico.

Tentei até contar quantas vezes até hoje eu mesma abriguei em mim uma fênix. Mas perdi a conta; foram muitas. Mesmo. Perdas, rompimentos, travessias, desilusões, cortes, saúde, amores, para em seguida ressurgir, mesmo que trazendo em minhas penas as marcas, até cicatrizes. Igual a ela, há o momento que paramos o canto feliz e entendemos a melodia triste que antecede o fogaréu.  Como disse, as fábulas muito me ensinaram, de fé, dos fatos, da vida, dos humanos, da moral da história. Das raposas, do coelho, da tartaruga, da coruja, dos sapos, do jacaré; da meninice da garota do leite às atitudes da gente simples capaz de carregar um cavalo nas costas.

Portanto, nada melhor do que a imagem da fênix para uma reflexão de fim de ano, de futuro, de ciclos, especialmente não só desse que estou particularmente passando, mas do que todos nós, enfim, estamos passando, finalizando, enfrentando adversidades nunca vividas, como a pandemia, morte de ídolos que considerávamos realmente imortais, tais os feitos, as marcas e o sucesso de suas vidas, reis e rainhas, com ou sem trono.

Falo ainda do ciclo tenebroso que se fecha com o fim do governo infernal, assombroso e cinzento que termina junto com este ano, deixando, inclusive, atrás de si, cinzas e muita destruição, ódio e divisões.  E governo esse que curiosamente será sucedido por uma fênix – um líder político renascendo de sua própria destruição e que precisará contar com esse aprendizado e com as forças do Universo para se recompor completamente e virar reconstrução, renascimento e a esperança de toda uma nação.

2023 chegando, e ao pensar numa mensagem positiva, me ocorreu apenas esta: que todos consigamos seguir como o fazem as fênix. Nesse eterno recomeçar, dando a volta por cima, voltando sempre a cantar bonito e a voar para o horizonte, lá onde o Sol nasce e morre todos os dias.

Feliz Ano Novo! Que, calorosos, sigamos juntos e misturados, em busca de nos eternizar, na fantasia e na realidade.

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MARLI - FÊNIX

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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Não resisti a mais imagens:

ARTIGO – Juras de Junho. Por Marli Gonçalves

Junho sempre é mês especial, até porque nele inclusive fecho mais uma dessas voltas ao redor do Sol na vida louca. É mês que marca muitas festas populares, muitos santos reverenciados, promessas, arrasta-pés que levam a um estado de embriaguez e cheio de corações cata-enamorados espalhados nas vitrines. Mas…

Como anda difícil simplesmente ser feliz, viver a vida, quando se é sensível. Quase metade do ano já se foi e, teimosos, nos mantemos esperançosos neste imenso país tropical, nessa gigantesca aldeia global, onde creio que, espaço tem, deve haver algum cantinho desconhecido onde ainda seja possível manter-se alheio à realidade assoladora e aos fatos inquietantes próximos ou distantes.

Aiaiai, quanto mais a gente reza, mais o nosso coração sofre com as notícias que chegam de todos os lados, uma sobrepujando a outra, como se todas elas fossem naturais e devêssemos apenas seguir em frente.

A imagem daquele homem assassinado sufocado por gás dentro de um carro de polícia no Sergipe seguirá aterrorizando nossos sonhos e ficará esperando a Justiça onde quer que se vá. Assim como daquele que teve seu pescoço apertado por coturnos longos minutos se debatendo. Tudo registrado, provado, visto. Real. Se repete.

A malvadeza, se pode dizer, atinge a todos: especialmente os negros, as mulheres, as crianças, os povos originários que vivem naquele cantinho onde havia paz e uma comunidade. Ou nas comunidades emanadas da miséria que recebem a visita do que seria a lei, e o saldo são corpos cravejados contados em números flutuantes.

E ainda tem guerra, melhor, guerras, muitas, as reais e as que travamos diariamente contra nossos próprios medos. As crianças mortas por balas que zunem e elas não tinham a menor culpa de haver uma indústria que movimenta toda a política internacional, dos Senhores das Armas, e que também aqui, infelizmente, encontra guarida e incentivo.

A loucura piorada que atinge a todos de uma forma ou outra, seja os jovens desesperançados que compram as armas e matam, sempre pensando numa vingança que os dominou durante a vida social com a qual não souberam lidar, seja a que libera a maldade em atos inexplicáveis, como essa recente maldição das madrastas – uma que joga o enteado pela janela durante uma briga; a outra que trama envenenar os seus, mata uma, dois meses depois tenta acabar com o outro, e da mesma forma, ainda por cima fazendo sofrer, por envenenamento. Eram pessoas acima de suspeita, sabemos depois.

Pessoas acima de suspeita estão sempre muito perto de nós. E as que suspeitávamos e tentamos tanto avisar, sem sermos ouvidos, do perigo que representavam, estão aí, aqui, ali, inclusive mandando, governando vários povos, como o nosso, e cercando-se sempre de outros seres piores ainda.

Ah, mas a história diz que sempre foi assim. Não. Não tem de ser. Tanta modernidade, tecnologia, vem servindo para o quê? A comunicação que acreditávamos ampliada nos divide, e sem que possamos nem reagir já que são como fantasmas, muitas vezes criados apenas para o terror, para a mentira, para espalhar o ódio.

É junho. Sabia de uma coisa? Eu não sabia. Junho sempre tem chuva de meteoros. Nenhum mês começa no mesmo dia da semana que junho em qualquer ano. E todos os anos termina no mesmo dia da semana que termina março. Começa no mesmo dia que fevereiro do ano que vem. Nele, a floração das rosas atinge seu máximo e junho já foi chamado de Rosa Lua. Não faz diferença, não muda nossa vida, mas é leve.

Aqui, comemoramos três populares santos: Santo Antônio, São Pedro, São João. Vamos ver bandeirinhas coloridas espalhadas, vai ter quentão, danças de roda e a quadrilha, mas a boa, aquela que nos junta batendo palmas, cantando, dançando, tentando nos embriagar para esquecer que, como já disse, repito: aiaiai, quanto mais a gente reza, mais o nosso coração sofre com as notícias que chegam de todos os lados, uma sobrepujando a outra, como se todas elas fossem naturais e devêssemos apenas seguir em frente .

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Marli - perfil cgMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – O Pior Ralouin do Mundo. Por Marli Gonçalves

Tudo bem que, como todas as questões têm dois lados, pode não ser o pior, mas o melhor, a partir do ângulo que se queira do Ralouin BR que se aproxima e que atravessará todo o país. Se você for um daqueles chegados numa história de terror, sem doces e sem travessuras, vai gostar do Halloween desse ano – que vai ser mesmo de amargar. Mas vamos viajar um pouco para o mundo das fantasias, do futuro, ou dos pesadelos, se preferir. Venha…

 

Era uma vez uma criancinha que acabou ficando cheia de dores e com problemas sérios na coluna cervical. Não que ela tenha tido essa mania de ficar olhando o celular com a cabeça baixa, pescoço curvado, não; ao contrário, foi porque ela passa muito tempo olhando para cima sempre que pode, teimando, com o pescoço bem levantado. Ela quase não sai de casa, fica ali, estudando à distância, que tinham achado que essa era a melhor forma dela não se contaminar com ideias sociais ou revolucionárias. Inventaram até um kit-papão para assustar a garotada.

Quando ia na janela ou no quintal, tinha essa mania, ficava com o pescoço quebrado pra cima, olhando o céu, esperando que passasse pelo menos uma – uminha que fosse já a faria feliz – cegonha, carregando um bebê na trouxinha, como disseram que foi assim que chegou nessa casa pro papai e pra mamãe. Nunca ensinaram a ela como os bebês eram feitos. Ela não sabia de nada dessas coisas, porque não achavam certo explicar nada para criança. Esses adultos! A cegonha nunca passou.

Mas ainda havia escolas, que bom! Havia ainda outros lugares fechados, como condomínios, onde grupos de crianças podiam ainda brincar todas juntas, sem adultos no meio, e meninos e meninas podia conhecer suas diferenças rosas e azuis ou roxas. Brincavam de mocinho/a e bandido/a, de pega-pega (ops!), de médico, uai, sim, que tem brincadeiras que atravessam o tempo. Como essas crianças de hoje são muito inteligentes, logo descobriram vários cantinhos onde podiam brincar longe das câmeras, que estão espalhadas em muitos lugares, vigiando tudo o que acontece. Sentiam coisas diferentes, viam até uns duendes, uns serezinhos que apareciam para fazer cócegas que eles gostavam muito.

d06db-bruxa2bhalloween2b21E então chegava o final do ano, e as Festas. Alegria! Tiro ao alvo! As criancinhas eram então ativadas, incentivadas a, além de acreditar no Papai Noel, acertar nele, já que andava de vermelho, essa cor tão perigosa, com os seus revólveres, mãozinhas em riste. Tinha virado moda ensinar as crianças a atirar – com cinco anos já começavam – seguindo uma moda lançada por um presidente que a alardeou, contando que foi como criou os machos que eram seus filhos. A filha só brincava de princesa do país tropical que adorará vê-la crescer nos próximos anos.

Aconteceu na história que os vampiros, lobisomens, diabinhos, elfos e duendes, bruxas, e até os santos e suas imagens, que passaram a ser boicotadas, começaram a se juntar, e se unir aos negros, índios e mulheres, homens sensíveis e também com mais muita gente que não aceitava que mandassem em suas vidas particulares, o fato que a todos unia. Logo na época de Páscoa lançaram um movimento, uma campanha. Não, não era mais para procurar os ovinhos de coelho, mas um outro ovo, os da serpente, ovos que tinham sido rompidos numa eleição ocorrida fazia pouco tempo e muitas dessas serpentes se espalhavam pelo país, sacudindo seus chocalhos, envenenando as famílias, e atacando quem não conseguiam mais hipnotizar com suas ideias retrógradas e bravatas.A bruxa queria pegar a menininha

Moral da história: passaram todos a ficar esperando a chegada de um novo protetor, que fizesse outras promessas – que o povo adora acreditar em promessas. E agora, quando de noite esse povo dorme, sonha com ele, o Saci, que pelo menos em folclore dizem que protege a mata e o meio ambiente, uma das primeiras vítimas desse pesadelo todo. Assim, crianças, no próximo 31 de outubro, Ralouin, preparem-se. Já estaremos todos pulando com uma perna só sobre brasas. E bem ralados.

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Marli Gonçalves, jornalista – Também acredita em contos de fadas. Cuidado com a Cuca.

marli@brickmann.com.br   /   marligo@uol.com.br

2018, booo!

ARTIGO – Ô gente chata! Por Marli Gonçalves

Ô gente chata!

Marli Gonçalves

andar-tracoÔ, seus corretinhos! Falta do que fazer, do que escrever para chegar como o mais inteligente e na moral nas festinhas e rodinhas quadradinhas, ou só vontade de alugar nossa paciência? Isso é porque são “modernos”. Imaginem se fossem caretas. Eram capazes de se insurgir até contra a goiabada com queijodan%c3%a7ante_mana2

Não estão vendo que estão dando tiro no pé? Aliás, se metralhando. Pedindo censura, corte – e não venham com lengalenga de dizer que ninguém quer censurar ninguém, que só querem acabar com o preconceito-racial-opressão-da-mulher-negra e do homossexual, como valentes combatentes-ecológicos-ambientalistas-sustentáveis que são, e nessa hora, vejam só o paradoxo, damos graças a Deus que sejam minoria mesmo.

Enfatizo: minoria de chatos. Ficam por aí com caraminholas dissertando regras/normas de comportamento, obtusas, desconhecendo o passado cultural, a língua portuguesa, nossa vivência. Desrespeitando a nossa inteligência.

Chatos que querem arrancar a mulata, mudar os sambas e marchas de carnaval, regular as fantasias, e agora, suprassumo, se recusam a usar paetês, purpurinas, glitters e confetes porque feitos de papel ou micro plástico demorariam a se decompor e poderiam ir parar nos oceanos. Imaginem: será que algum desses seres foi mesmo ouvir a comunidade LGBT sobre isso? Como assim, sem brilho? UÓ, responderão.

No entanto, para decorar seus corpos – modinha – algumas moças estão usando purpurina “comestível” vendida em lojas de confeitaria, aquele pozinho de decorar bolos e doces. Sou só eu que vejo uma aura sexual safadinha nesta troca? Sacaninha? Espertinha? Comestível, é? Interessante.

teka-carnaval-05Mas vamos voltar ao cerne desse debate, que agora tudo vira debate. Ô coisa chata! Banir dos blocos algumas marchinhas (muito) antigas de carnaval? “O Teu Cabelo Não Nega”, de Lamartine Babo, de 1932. “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão”, “Índio quer apito”, “O teu cabelo não nega”. “Mulata Bossa Nova”. Sim, já apareceu até representante indígena flechando “Índio quer apito” (“Ê, ê, ê, ê, ê, índio quer apito / Se não der, pau vai comer”).

Mexeram com o Caetano, mas creio que o baiano negociou, arretado, porreta. Após várias discussões, alguns blocos decidiram manter no repertório “Tropicália”, que cita a mulata.

Sim, invocaram com a mulata. Entraram na máquina do tempo para trás uns 300 anos para justificar e trazer para hoje de onde teria vindo a palavra. Como mulata é a filha de negro com brancas e vice-versa, e naquela época, braba, de escravidão, a cria de jumento com cavalos já era a mula, veio a palavra, do latim mulus. Enfim, os mulatos também estão nesse samba atravessado. Acreditem: tudo isso acontecendo no Carnaval de um país chamado Brasil. Justamente no Carnaval que agora com a volta dos blocos de rua se torna mais popular e democrático. Alegria na cabeça e rua.

Mas não, resolveram levar a chatice da política junto para as avenidas e praças. Invocaram com a mulata. Fui atrás de uma das origens e me deparei com uma obra prima da idiotia no artigo de um cara, que pode ter sido base, cheio de citações inteligentinhas, um sujeito que escreve com x no lugar de palavras com gênero. Negrxs. Todxs . Posso parar por aqui, né? ÔÔÔÔ, chatos, chatos, chatinhos.

Resolvi botar água nessa fervura e lembrar que mulata, além de como podem ser lindas, é também designativo de uma espécie de peixe, um tipo de abelha, uma variedade de batata roxa. Vão pirar horrorizados ao serem lembrados de algo ainda mais dramático – embora natural. Há uma erva medicinal chamada Catinga de Mulata (Tanacetum vulgare). No candomblé é utilizada para preparar água-de-cheiro. O chá seria de efeito mágico para reumatismo, pedra nos rins, amenorreia, e como vermicida, contra lombrigas. Como unguento, cura feridas, furúnculos, psoríase e detona piolhos.mulata

Tem um docinho de festa chamado Beijo da Mulata. E uma Bica da Mulata, escultura em Belfort Roxo, no Rio de Janeiro. Tem a Mulata fuzarqueira, de Noel Rosa, pinturas fantásticas e muito erotizadas de alguns mestres. Tem a Mulata Assanhada, de Ataulfo Alves – aquela que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente. As mulatas estão muito bem, orgulhosas de sua negritude. Só não as chame de moreninhas que isso sim é que é preconceito.

E agora? Libertem a Nega Maluca!

Deixa o cabelo dela. Sem essa de vir com moral para dizer o que é certo ou errado, procurar pelo em ovo, se ofender com isso quando há tantas outras coisas nos atacando. Como escreveu o mestre Ruy Castro, “enxergar ofensa nas marchinhas é caso para terapia de grupo — com o ofendido no divã e um grupo de psiquiatras em volta”.

Saiam já desse armário.

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Marli Gonçalves – Sempre adorei fantasia de havaiana. Essa pode? Ou vão me acusar de imperialista ianque estadunidense?

SP, esperando o carnaval chegar, 2017

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ARTIGO – Rabos de Sereias, por Marli Gonçalves

Como a lendária vida das sereias pode se aproximar da nossa. Como brinquedos virtuais viciam e relaxam, igual à droga na veia. E co271553g57ngfb5bemo seria bom se pudéssemos sempre criar mundos imaginários e entrar neles, de verdade, vivendo alguma fantasia, aventura, como nos filmes       trop01

Estou criando sereias. É. É isso mesmo. Não tem gente que conta carneirinhos, conversa com formigas? Pois bem, eu resolvi criar sereias. Era preciso desacelerar, diminuir a pressão, dar um tempo para a cabeça refrescar. Estando em São Paulo – aliás, numa deserta São Paulo – mesmo assim, difícil é de se desconectar dela! Eu, inclusive, nem posso, mesmo.

Ficando, o estado de atenção, aquele alarme sempre pronto a ser acionado, não pode ser deixado de lado, totalmente desligado. Mas pensando bem – vamos e venhamos e convenhamos – que a situação lá pelas praias também não está das mais tranquilas – o noticiário que sobe a serra parece muito com roteiros de filmes de terror ou de bang-bang. Daí, muito melhor criar sereias em ambiente seguro, virtual, controlável e na cidade grande, que a coisa não está para peixe.

Voltando às minhas sereias – já tenho mais de dez – devo dizer que cuidar delas está me ocupando muito e de uma forma muito especial nesses dias de folga. Eu as acordo, ponho uma a uma para trabalhar em busca de tesouros. Em geral elas acham e me devolvem toda sorte de lixos que foram jogados no fundo do mar, alguns até muito perigosos, como anzóis. Latas, pneus, botas e bicicletas velhas… E como elas, danadinhas, só saem para trabalhar com moedas adiantadas, levo muito prejuízo, porque, vendidos, o que faço na mesma hora, esses lixos não passam de 10, 15 moedas. (As sereiazinhas não vão nem até ali, nadando seus rabões, por menos de 60 moedas, o mínimo do “cachê”). Lá no reinado, parece a nossa vida aqui fora: lixo, para comprar, gastamos fortunas; e quando é para vender vemos muxoxo, valem pouquinho, inclusive as peças e os corais mais raros. E as mais gostosas (minhas sereias são bem gostosas) valorizam mais o seu cachê.mermaid1

É legal vê-las passando, nadando, dançando com seus rabinhos coloridos – esqueci de dizer: cada um tem uma cor, um perfil, um enfeite; já vêm com nome, mas isso dá para mudar. Na ficha de cada uma, acreditem, tem até a “foto” das “amigas sereias” que cada uma delas gosta ou detesta – o termômetro da sua produtividade. Elas precisam estar bem felizes para depositar mais moedas no baú enquanto nadam. E eu preciso muito das moedas para gastar com elas. Preciso também de pérolas, mas essas são raríssimas de achar. Veja só, lembrei do mundo exterior novamente: tão raros como achar pessoas honestas, de caráter e amigos leais; tão raro quanto políticos preparados para exercer cargos importantes. Um grita, o outro não escuta.

Mermaid53Um jogo e tanto, de contente. Chama-se Mermaid World ( O Mundo das Sereias) e é um aplicativo da Apple, grátis, que achei por acaso. Botei em meu IPAD, e onde eu vou elas vão comigo.Sempre gostei de sereias, da sua forma, dos mitos ao seu redor, do canto irresistível aos marinheiros, aos homens, e não há fábula infantil melhor para mim do que A Pequena Sereia, aquela que depois de enfeitiçada e de ganhar pernas, sofria a cada passo, como se mil agulhas transpusessem seu corpo. Tudo para conquistar um tal príncipe. Insosso, tanto quanto o personagem da novela aí, que deve estar deixando sonolento até o Dragão do São Jorge. Não sabe se dá ou desce.

Há muito as coleciono. Sereias vão ficar na moda sempre, com seus rabos majestosos. Semana que vem estarão expressas num mini-seriado, com a Isis Valverde, “O Canto da Sereia”.

Ainda não contei como as minhas sereias surgem no marzinho particular dessa viagem, que me recuso a chamar de jogo, categoria que eles lá enquadraram o aplicativo. Você pode até comprar sereias, mas a forma mais legal é juntando duas das suas, que você escolhe. Aí elas vão cantar para chamar uma outra sereia. São 51 ao todo. (Ai, que saco, lembrei do mundo exterior de novo e eu tinha me prometido esquecer do Lula). Mas são 51 mesmo e as mais incrementadas, fui ver, chegam a custar alguns milhares de moedas. Vão demorar muito a nascer. Melhor tentar achá-las fazendo as outras cantarem. Canta, sereinha, canta! Ensinem para o Mantega como conseguem multiplicar, e apenas investindo em vocês mesmas! Esse está mais perdido do que o fio dental das sereias cariocas.

Fora isso, cada Reino – você vai comprando espaços – é limitado a apenas cinco sereias e como são, mal ou bem, mulheres, acredito que quem criou o tal aplicativo ache que mais de cinco daria pancadaria ali no fundo do mar, e o que seria realista demais para um brinquedo virtual. Uma puxando o rabo da outra, já pensaram?glitter-graphics-mermaid-572719

glitter-graphics-mermaid-650248Descobri esses dias que para viver bem pelo menos com a gente mesmo e até com nossa criança interior, precisamos de alguma fantasia particular, seja ela qual for. E vou falar: cheguei a essa conclusão depois de assistir ao maravilhoso novo filme de Ang Lee, As Aventuras de PI. Por incrível que pareça, foi a imagem dele, PI, um garoto ainda, náufrago, convivendo com um tigre, no meio do oceano e girando medusas brilhantes quem me lembrou disso.

Melhor que foi antes de um naufrágio. Porque as sereias não existem; não podem salvar ninguém.

São Paulo, mares de 2013 a navegar
 

Marli Gonçalves é jornalista– Hodiernamente, é preciso estar mais à frente. Se a sereia é de água doce é uma Iara, confere?

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