ARTIGO – As surpresas dos segundos fatais. Por Marli Gonçalves

 

Você pensa nisso? Sobre os átimos da vida das pessoas, nossos? O que separa a existência e o arrebatamento? A imprevisibilidade da vida? Tenho refletido sobre isso. Muito mais forte agora, pela maturidade e, óbvio, influenciada também pela terrível e literal avalanche de acontecimentos que assistimos nos últimos tempos. É a visão do descontrole que temos sobre a vida e a morte, sobre todas as coisas e seus inversos. Sobre as patéticas declarações dos que propiciam que segundos terríveis assim ocorram.

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Como você lida com isso? Resolvi perguntar. Cada vez mais, não no sentido religioso, mas filosófico, parece que temos de diariamente sorver tudo o que nos acontece de bom com sofreguidão, como se esses momentos sejam o combustível que necessitamos, uma reserva pessoal de energia, para seguir pulando nesse tabuleiro, nesse quadrado que corremos até sermos imprensados pela realidade de alguma força contrária.

Essa semana foi mais uma, pródiga em notícias de segundos. Aliás, esse ano está se avolumando com elas, como Brumadinho, a lama que escorreu e varreu centenas de vidas, as crianças baleadas por outras na escola de Suzano. Tivemos agora a chuva torrencial que caiu no Rio de Janeiro, os prédios que desabaram. A família que teve o carro fuzilado pelo Exército.

Acompanhamos pelo noticiário. Mas você se imagina em alguma daquelas situações? Não vamos nem pensar em quem vive em áreas de risco, que estas pessoas não têm outro rumo e parecem apenas esperar seus destinos se agarrando ao pouco que conseguem obter desta vida, ligadas em um automático desalento. Pensa naquela avó toda feliz com sua neta, passeando em um shopping, distraindo a criança que os pais haviam deixado com ela para viajar. Eu a imaginei comprando um brinquedo, passando na praça da alimentação. Na saída, fim de tarde, a chuva forte. Melhor pegar um táxi, pensou. Pouco tempo depois, ela, a neta e o motorista do táxi saíam de circulação, esmagados por um morro que derreteu, de uma via que deveria ter sido interditada.

O jovem que faria aniversário no dia seguinte, e que comemoraria com um churrasco, pegou carona na garupa da moto de um amigo. Pensava no quê? Se compraria linguiças, picanha, talvez coraçõezinhos de frango, algumas garrafas de cerveja, carvão? A água que descia das ladeiras de onde morava não teve pena. Aproveitando-se talvez até dessa sua distração diletante, o arrancou da moto, levando-o com ela. Em segundos, sem aniversário, sem carne, sem nada. Afogado. Não no mar, não em nenhum lago ou represa, mas na rua, na viela, preso debaixo das rodas de um carro estacionado.

Voltando um pouco, no domingo, a família – pai, mãe, filha, sogro, a amiga do casal de carona – sai de uma festa infantil. No caminho natural de todos os dias, o carro popular, branco, passa próximo a um quartel. Não corria, ninguém pediu que parasse. Passava. Passou. Diante de mais de uma dezena de soldados do Exército, talvez postados ali, chateados, porque em trabalho debaixo do Sol naquele dia de forte calor que prenunciava inclusive a chuva torrencial dos dias seguintes. Parece que aguardavam avistar um outro carro branco, também popular, do mesmo modelo popular, repito, daquele da família feliz, e que havia sido roubado pouco antes. Não perguntaram. Dispararam. 80 tiros. Um fuzilamento. Sem paredão. Os soldados não ouviram – há relatos de que até debocharam – os gritos desesperados, o choro da criança, das mulheres, da mãe e esposa. O motorista, o marido, morreu na hora; o sogro, atingido, tenta sair do carro. Do lado de fora, um morador de rua corre para tentar ajudar – ele entendeu os gritos – mas logo cai atingido gravemente. Está em coma, estado gravíssimo. Quantos segundos se passaram?

Por outro lado, para amenizar, surge nas redes sociais um vídeo que viraliza. Ele mostra uma cena incomum. No mesmo Rio de Janeiro, um homem negro, alto, munido de duas caixas plásticas, com elas construindo uma ponte para que uma senhora atravessasse em segurança a rua inundada. A cada passo, a gentileza, a mão auxiliando que a senhora fosse pulando de uma a outra até chegar segura ao outro lado. Também foram segundos; mas estes mudaram para melhor a vida do guardador de carros, viúvo, com um filho pequeno. Sua generosidade ganhou o mundo e ele ganhou uma vida nova, uma casa, vinda de uma vaquinha organizada pela internet, e por alguém que em outro segundo pensou como poderia ajudar.

Em segundos, tudo realmente pode mudar. Mas o que não muda, nem em segundos, nem em minutos, dias, horas, meses, anos, décadas, é o descaso das autoridades, nem as suas patéticas declarações depois que os fatos acontecem sob as suas barbas.

Não foram chuvas corriqueiras, senhor prefeito Crivella. O Exército matou sim, senhor Presidente. Fuzilou. Não foram “incidentes lamentáveis”, Ministro Moro, e outros tantos, que nós é que lamentamos que depois de tantos dias depois vocês abram a boca só para dizer isso.

Foram segundos em que morreram ou tiveram suas vidas modificadas muitas pessoas. São vocês que comandam muitas dessas diferenças entre a vida e a morte, entre a alegria e a tristeza, entre o futuro e o fim.

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Marli Gonçalves, jornalista –

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

Brasil, lamentável 2019


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ARTIGO – Aonde a vaca vai, o boi…Por Marli Gonçalves

sample_pruttko Nunca expressões populares foram tão importantes para resumir manchetes, caras, fatos e fotos que estão se passando à nossa frente de forma e velocidade vertiginosa. As “bovinas” são ótimas. A vaca foi para o brejo (afogada na enchente com uma árvore caída em cima, sem luz nem telefone). Nem que a vaca tussa (e ela parece que está com coqueluche). Conversa pra boi dormir, e nos dar pesadelos. Vaquinhas de presépio fazendo muuu.

Se for ir pelo “ele sabia”, vai ter gente aqui no Brasil se contorcendo toda de medo de ter 12 homens apontando uma arma para eles, e você sabem de quem estou tratando. De quems.

Me lembrei muito daqueles programas de auditório onde um grupo de pessoas escolhe uma das respostas e todos juntos se aglomeram debaixo dela. Aí o apresentador dá outra pista e esse mesmo grupo muda de ideia e corre para a outra alternativa. Ou também me lembra cabeças chacoalhadas. Lulu Santos comporia novamente “como uma onda”.

Amo que as coisas não sejam estáticas, esclareço logo. Mas há questões – e as morais estão entre elas – que ou se é, e isso significa aguentar os trancos, ou não se é, e as redes sociais misturam ambas. A argumentação lógica e minimamente racional é tratada a sopapos e a beligerância empesteia o ar. Esses dias os Charlies enlouqueceram a ponto de muitos deles tentarem justificar a barbárie do fuzilamento na Indonésia, que matou um, matará outro, outros, sob o bovino olhar de beneplácito da humanidade.

Justificativas parecidas com a de uma certa Sheherazade quando o menino ladrão quase foi linchado. Esse esquadrão da morte de anjos celestiais acha sempre que os caras fizeram por merecer, e parecem se colocar a si próprios vestes de juízes, como mais puros, honestos, limpos e legalistas do que os outros. Até o Papa andou falando em distribuir umas bolachas caso alguém falasse de sua mãe! Estou esperando agora o Dalai Lama aparecer com a faca nos dentes.flycow

Essa castidade de quinta categoria acaba justificando também o que de mais pavoroso pode haver, que vai desde a menina estuprada porque “provocou” à mulher assassinada porque “traiu”.

Protestos agora são envelopados – nunca tinha visto isso, coisa que chamam de liberdade para protestar, cercada de policiais armados com escudos e gases até os dentes, desafiadores. A beligerância sempre acaba mal, e os mascarados, baderneiros, sejam o que forem, que estragam a festa, estarão sempre lá, já que uns justificam os outros. E gastamos gente, bombas, balas, queimamos gasolina para viaturas e helicópteros, cansamos (e irritamos) os soldados. Os senhores da guerra são sempre os que sairão lucrando. Impressionante.

A ignorância atrasa a Humanidade. Espalha o medo. Vi gente se comprazendo com o fim de um compatriota, até vangloriando-se como se isso significasse o fim de todos os traficantes do mundo, o fim das drogas, a sanção divina. O exemplo supremo.
E o número de vezes (algumas centenas) que me deparei com pessoas se perguntando por que é que ninguém estava tão chateado com morte de dois mil nigerianos tanto como com a morte dos cartunistas da revista? Ninguém? Você é o quê? Porque se espera sempre dos outros ações e reações, me pergunto? Porque sempre se espera que alguém siga na frente para ser fuzilado antes? Daí virarem heróis ou heroínas, esquecidos minutos depois? A opinião própria não tem mais sentido? Não há mais personalidade?

Também vi gente que anda tão com a cabeça virada pelo petismo que está achando até que a pesquisa internacional que constatou que 2014 foi o ano mais quente de todos foi desencavada pelos jornais por interesse em amenizar a situação da água e a vida dos tucanos em São Paulo. O calor por aqui está mesmo infernal, mas também ouvi uma senhora dizendo que usaria um leque só porque alguém disse na televisão que era a boa – antes ela tinha vergonha.

Lembrei muito de minha mãe, quando falávamos que tal amigo tinha feito tal coisa e não entendíamos por que nós não podíamos fazer o mesmo e ela dizia: ah, se ele for se atirar da ponte, você também se atira?

São Paulo, derretendo, 2015. cowfaxMarli Gonçalves é jornalistaSe o ano continuar nessa balada será bem difícil ficar em casa parado, só vendo pela tevê os “outros” protestarem, pelo menos aqui nas ruas desta quatrocentona capital, e nas avenidas e praças glamorosas deste mundo afora.

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