ARTIGO – Carlos Brickmann. Por Marli Gonçalves

Carlos Brickmann: Ensinou muitos. Deu a mão a outros tantos, solidário. Confiou e empurrou para a frente jovens talentos que sabia reconhecer – muitos destes alçaram voos seguros para a fama, essa senhora egoísta a qual ele mesmo, Carlinhos, como era chamado esse desajeitado de mais de cem quilos, quase dois metros de altura, nunca deu bola…

carlos brickmann
Carlinhos, com nossa gata Mel
ARTIGO, A CONVITE DA DIREÇÃO,  PUBLICADO ORIGINALMENTE NA FOLHA DE S.PAULO, 
OPINIÃO, PÁG. A3, EDIÇÃO DE 23 DE DEZEMBO DE 2022

O legado de alguém é o que fica registrado. Temos sorte em preservar os escritos do jornalista Carlos Brickmann, que partiu dia 17, aos 78 anos, 59 de profissão. No Grupo Folha, onde chegou aos 19 anos, foi e voltou três vezes, e em todos os principais veículos de comunicação do país, jornais, revistas, tevês, rádios, sites. Seu Frias, Octavio Frias de Oliveira, sempre foi referência usual sua. Autodidata, leitor voraz, cuidadoso com a verdade, visão pluralista, bom amigo, colegas que há dias enchem as redes sociais de histórias deliciosas sobre esse convívio. As mãos suadas que secava nas laudas, a capacidade de escrever enquanto o mundo caía ao seu lado e sem olhar para o teclado. Textos enxutos, precisos, vocabulário impecável. Dono de um humor politicamente incorreto, onde se incluía como gordo, feio, judeu e o que mais pudesse, e que nunca vimos – por ser puro – nenhuma mulher, negro, deficiente ou gay se doer. Ao contrário, risadas eram sempre ouvidas, dos próprios.

Ensinou muitos. Deu a mão a outros tantos, solidário. Confiou e empurrou para a frente jovens talentos que sabia reconhecer – muitos destes alçaram voos seguros para a fama, essa senhora egoísta a qual ele mesmo, Carlinhos, como era chamado esse desajeitado de mais de cem quilos, quase dois metros de altura, nunca deu bola. Mauricio de Sousa, com quem trabalhou na Folha da Tarde deu ao simpático elefante de suas histórias que começavam a fazer sucesso o seu nome do meio: Ernani.

Carlinhos gostava disso. Era pura memória, aliás, de elefante mesmo, como se diz. Pura história. Aliás, fatos incontáveis, vividos por ele, e os da História mesmo, geral. Seu conhecimento era acima do normal dos fatos nacionais e internacionais. Da política desta nação que vive em círculos, de momentos históricos, das guerras, em particular da Segunda Grande Guerra, que levou seu povo ao extermínio do Holocausto. Tinha horror a guerras e armas. Mas, guerreiro, defendia sua gente onde e como pudesse, chamando para o debate, que sempre ganharia com Inteligência aguçada e argumentos imbatíveis, qualquer um que destratasse de alguma forma o povo judeu, fosse quem fosse. Judeu engraçado esse que não seguia nenhum rito, adorava uma boa costelinha, um torresminho.

Um grande cidadão em todos os sentidos. Além do jornalismo, sua trincheira. Corintiano roxo, democrata, adepto da liberdade de imprensa acima de tudo, contra a censura, contra ditadores de qualquer bandeira. Cutucou poderosos, enfrentou generais na ditadura, buscou justiça pelo primo Chael Schreier, assassinado torturado, despistou policiais e protegeu perseguidos políticos. Foi ainda um dos primeiros homens a desmistificar a adoção de crianças, agindo como divulgador da ação e anjo de muitas delas, que acompanhou à distância ver crescerem. Seus dois filhos são adotados. Amava os gatos que mantinha em casa e no escritório. Relaxava fazendo cosquinhas neles.

Amigo há 45 anos, com quem tive o prazer de trabalhar e aprender por 30, fico feliz em contar mais dele. Meu Natal ficou menos triste.

___________________________

Carlos Brickmann - CarlinhosMarli Gonçalves, 64, jornalista. Sócia e diretora do Chumbo Gordo (www.chumbogordo.com.br), o espaço livre para o pensamento e conhecimento, por ele idealizado.

______________________________

Leia também, mais sobre Carlos Brickmann

( 7 de outubro de 1944 – 17 de dezembro de 2022):

Carlinhos

Carlos Brickmann,Carlinhos, o Caco. Por Ricardo Setti

Carlos Brickmann

COM MARLI GONÇALVES
COM KASSAB
COM QUÉRCIA E CARLOS RAYEL
COM RICARDO KOTSCHO E JORGE ARAÚJO

COM JOSÉ DIRCEU

COM RICARDO KOTSCHO
COM MEL
BEBÊ
COM ULYSSES GUIMARÃES
carlos brickmann
Com nossa gata Mel

COM A AMIGA EVELYN SCHULKE
COM MARLI

COM A ESPOSA, BERTA

ARTIGO – As surpresas dos segundos fatais. Por Marli Gonçalves

 

Você pensa nisso? Sobre os átimos da vida das pessoas, nossos? O que separa a existência e o arrebatamento? A imprevisibilidade da vida? Tenho refletido sobre isso. Muito mais forte agora, pela maturidade e, óbvio, influenciada também pela terrível e literal avalanche de acontecimentos que assistimos nos últimos tempos. É a visão do descontrole que temos sobre a vida e a morte, sobre todas as coisas e seus inversos. Sobre as patéticas declarações dos que propiciam que segundos terríveis assim ocorram.

Imagem relacionada

Como você lida com isso? Resolvi perguntar. Cada vez mais, não no sentido religioso, mas filosófico, parece que temos de diariamente sorver tudo o que nos acontece de bom com sofreguidão, como se esses momentos sejam o combustível que necessitamos, uma reserva pessoal de energia, para seguir pulando nesse tabuleiro, nesse quadrado que corremos até sermos imprensados pela realidade de alguma força contrária.

Essa semana foi mais uma, pródiga em notícias de segundos. Aliás, esse ano está se avolumando com elas, como Brumadinho, a lama que escorreu e varreu centenas de vidas, as crianças baleadas por outras na escola de Suzano. Tivemos agora a chuva torrencial que caiu no Rio de Janeiro, os prédios que desabaram. A família que teve o carro fuzilado pelo Exército.

Acompanhamos pelo noticiário. Mas você se imagina em alguma daquelas situações? Não vamos nem pensar em quem vive em áreas de risco, que estas pessoas não têm outro rumo e parecem apenas esperar seus destinos se agarrando ao pouco que conseguem obter desta vida, ligadas em um automático desalento. Pensa naquela avó toda feliz com sua neta, passeando em um shopping, distraindo a criança que os pais haviam deixado com ela para viajar. Eu a imaginei comprando um brinquedo, passando na praça da alimentação. Na saída, fim de tarde, a chuva forte. Melhor pegar um táxi, pensou. Pouco tempo depois, ela, a neta e o motorista do táxi saíam de circulação, esmagados por um morro que derreteu, de uma via que deveria ter sido interditada.

O jovem que faria aniversário no dia seguinte, e que comemoraria com um churrasco, pegou carona na garupa da moto de um amigo. Pensava no quê? Se compraria linguiças, picanha, talvez coraçõezinhos de frango, algumas garrafas de cerveja, carvão? A água que descia das ladeiras de onde morava não teve pena. Aproveitando-se talvez até dessa sua distração diletante, o arrancou da moto, levando-o com ela. Em segundos, sem aniversário, sem carne, sem nada. Afogado. Não no mar, não em nenhum lago ou represa, mas na rua, na viela, preso debaixo das rodas de um carro estacionado.

Voltando um pouco, no domingo, a família – pai, mãe, filha, sogro, a amiga do casal de carona – sai de uma festa infantil. No caminho natural de todos os dias, o carro popular, branco, passa próximo a um quartel. Não corria, ninguém pediu que parasse. Passava. Passou. Diante de mais de uma dezena de soldados do Exército, talvez postados ali, chateados, porque em trabalho debaixo do Sol naquele dia de forte calor que prenunciava inclusive a chuva torrencial dos dias seguintes. Parece que aguardavam avistar um outro carro branco, também popular, do mesmo modelo popular, repito, daquele da família feliz, e que havia sido roubado pouco antes. Não perguntaram. Dispararam. 80 tiros. Um fuzilamento. Sem paredão. Os soldados não ouviram – há relatos de que até debocharam – os gritos desesperados, o choro da criança, das mulheres, da mãe e esposa. O motorista, o marido, morreu na hora; o sogro, atingido, tenta sair do carro. Do lado de fora, um morador de rua corre para tentar ajudar – ele entendeu os gritos – mas logo cai atingido gravemente. Está em coma, estado gravíssimo. Quantos segundos se passaram?

Por outro lado, para amenizar, surge nas redes sociais um vídeo que viraliza. Ele mostra uma cena incomum. No mesmo Rio de Janeiro, um homem negro, alto, munido de duas caixas plásticas, com elas construindo uma ponte para que uma senhora atravessasse em segurança a rua inundada. A cada passo, a gentileza, a mão auxiliando que a senhora fosse pulando de uma a outra até chegar segura ao outro lado. Também foram segundos; mas estes mudaram para melhor a vida do guardador de carros, viúvo, com um filho pequeno. Sua generosidade ganhou o mundo e ele ganhou uma vida nova, uma casa, vinda de uma vaquinha organizada pela internet, e por alguém que em outro segundo pensou como poderia ajudar.

Em segundos, tudo realmente pode mudar. Mas o que não muda, nem em segundos, nem em minutos, dias, horas, meses, anos, décadas, é o descaso das autoridades, nem as suas patéticas declarações depois que os fatos acontecem sob as suas barbas.

Não foram chuvas corriqueiras, senhor prefeito Crivella. O Exército matou sim, senhor Presidente. Fuzilou. Não foram “incidentes lamentáveis”, Ministro Moro, e outros tantos, que nós é que lamentamos que depois de tantos dias depois vocês abram a boca só para dizer isso.

Foram segundos em que morreram ou tiveram suas vidas modificadas muitas pessoas. São vocês que comandam muitas dessas diferenças entre a vida e a morte, entre a alegria e a tristeza, entre o futuro e o fim.

———————————-reloginho animado

Marli Gonçalves, jornalista –

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

Brasil, lamentável 2019


ME ENCONTRE (se republicar, por favor, se possível, mantenha esses links):

https://www.youtube.com/c/MarliGon%C3%A7alvesjornalista

(marligoncalvesjornalista – o ç deixa o link assim)

https://www.facebook.com/BlogMarliGoncalves/

https://www.instagram.com/marligo/