ARTIGO – Sobre os pequenos e os grandes poderes. Por Marli Gonçalves

Sobre os pequenos e os grandes poderes

Por Marli Gonçalves

poderTerremoto! A terra política – molhada, lama grossa – se dissolve sob os nossos pés. Entreolhamo-nos inquietos perguntando o que vai ser, quem é que pode saber, sabe ou saberá de alguma coisa, uma luz que seja. Os pequenos poderes se mantêm; os grandes se dissolvem. Temo os médios, do que serão capazes

Nesse momento estou às voltas com os tais pequenos poderes, com os “bozós”, com normas e o fantástico Sistema que impõe regras inacreditáveis seguidas cegamente por esse povo invisível – transparentes só até que precisemos circular entre eles. Em um hospital, por exemplo, acreditem, estão presentes em todos os cantos – até mais que médicos e enfermeiras. Estão em todos os lugares, uniformizados, terceirizados, servidores públicos e privados, alguns até armados.

Já os grandes poderes carregando seus egos enormes e que protagonizaram as cenas dessa semana não fazem outra coisa senão justamente aparecer fulgurantes dia e noite arrastando suas plumas e movendo mundos e fundos para puxar a sardinha cada um para o seu lado. Ou escapar das ondas do tsunami que se avizinha.

Os pequenos poderes, por sua vez, são subalternos, cumprem ordens e comandos – que citam como razão argumento e repetem como autômatos. Eles não sabem o que é lógica. O perigo é justamente de onde vêm essas orientações. Porque é só com elas em punho que eles, esses pequeninos, crescem, se acham importantes, implacáveis, legalistas. Atacam.

Por outro lado os Poderes com maiúscula – Legislativo, Executivo, Judiciário –têm se estranhado como nunca, fazendo borbulhas, um tentando afogar o outro, empurrando a cabeça para dentro d`água. Tudo executam sorrindo, fazendo mesuras.

Nessa terra molhada com o nosso suor, chão inseguro, movediço, estranhamento, o que vemos é que a cada movimento brusco afundam todos. Nos levando junto. Protagonistas e figurantes.

Fosse um filme faroeste seriam balas e flechas zunindo para tudo quanto é lado no Planalto Central. Fosse um filme de guerra daria gosto de ver os aviões abrindo suas escotilhas e atirando bombas de delações premiadas, lançadas e chovendo também sobre todas as cabeças premiadas, só não se sabe até quando com a coroa.

Todo mundo manda. Ninguém obedece. Ou obedeceria quem tivesse juízo, diz o dito popular. O mais engraçado está em um tentando mandar no outro, os grandes, e de onde estão saindo as faíscas maiores e mais perigosas no momento em que tanto combustível está jogado no chão.

Repito: temo os exércitos invisíveis dos pequenos poderes e do que serão capazes os seus comandantes ainda tão toscos e primitivos nesse país que não consegue se desenvolver sem tropeçar. Temo os grandes poderes que embaralham as cartas e não sabemos quais escondem nas suas mangas, sejam togas ou ternos.

Nos lembra muito uma canção, de Chico Buarque: O que será, que será? Que todos os avisos não vão evitar/ Por que todos os risos vão desafiar… O que será, que será? Que andam suspirando pelas alcovas/Que andam sussurrando em versos e trovas/Que andam combinando no breu das tocas/Que anda nas cabeças, anda nas bocas?… O que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá?…

_____________geniOS DO PODER_______

20160813_143252Marli Gonçalves, jornalistaImprensa, uma profissão que até já foi um Poder. Agora só registra o estouro dos fatos que deixou passar debaixo de suas barbas por tanto tempo, durante tão longos anos.

São Paulo, 2016, o ano que estica suas sombras

ARTIGO – Quando ficamos transparentes. Por Marli Gonçalves

Walking-man2_thumbEm que dia? Que momento? Aqui pelo meu lado não fez barulho, nada, nem um clique. Um dia percebi que havia ficado transparente, só podia ser isso. Estranho, quando a gente vai envelhecendo, ou amadurecendo, começamos a ficar meio invisíveis para um monte de coisas de que a gente não gostaria. Não gosto nada disso. Se bem que tem hora que é bem legal desaparecer, mas só quando nós temos o controle total disso.walking

Não. Não é que você suma. Não é isso. Só não te veem. Parece que fica transparente, invisível, especialmente em determinadas situações. As pessoas quase te atravessam, tanto com o olhar como até de forma física, fato que, aliás, aproveitando o assunto geral, anda me irritando sobremaneira. Você está lá andando na rua, na sua linha, e vem vindo alguém igual a uma toupeira e que espera que seja você quem desvie o seu caminho para ela passar gloriosa. É como se ela não te visse, ou pouco se importasse. Comigo não, violão! Viro um tronco. Fico que nem um soldadinho marchando, durinha; mantenho meu passo, e já me preparo para rosnar bem claramente, se o adversário olhar feio e aí me notar, ou esbarrar, em geral distraídos com os seus celulares, filhinhos ou amigos. Fico igual ao tigre que avisou muito ao menino que estava bem nervoso, antes de arrancar-lhe o braço. Tudo tem limite.

Sou baixinha, mas invocada. E se tinha coisas que já me irritavam antes, agora que sou mais eu, com o passar dos anos, o bom é nem precisar deixar barato. Vejam só: sempre fui tida como meio, digamos, exótica, a palavra que tiram da cartola cada vez que tentam definir meu estilo. Não é mau ser exótica. Não é isso. Mas é que sei bem o cisquinho de crítica que o adjetivo contém. Exclui um pouco você do mundo. Mas, enfim, isso quer dizer que sou sim – ou era – notada por ser diferente.

space_glove_animationPor causa de um projeto, que em outro dia conto qual é, tenho procurado saber mais e pensado muito nessa coisa das mudanças todas (e muitas, tolas) que vêm com o tempo e sobre as quais precisamos fazer igual ao bobinho slogan do Aécio Neves, precisamos conversar. São porque são. Tenho falado mais com pessoas da minha idade, ou com um pouco bem mais. Foi quando descobri que um dos maiores problemas do amadurecimento não é cair da árvore – é a invisibilidade. Mulheres reclamam, homens reclamam disso. Pelo que andei vendo, inclusive, quem tem filha ou filho crescido parece que sofre mais ainda, porque aí há um parâmetro de comparação. Eu não tenho filhos, mas já tive essa sensação de inexistência quando saía com minha cadela husky pelas ruas há alguns anos. Ela era linda, branca, olhos azuis, e todos os olhares se voltavam quando passava, como se a dona aqui, do outro lado da guia da coleira, fosse invisível.

Por um lado havia o orgulho. De outro, certo desapontamento quando desejava que aquele olhar, particularmente, fosse para mim. Não é uma questão sexual apenas. Mas ninguém quer ou gosta de não ser visto. Toda mulher passa seu batonzinho, arruma o cabelo, pinta as unhas – feias, gordas, casadas, solteiras, bonitas – para que outras e também outros apenas reparem. Uma vista-d’olhos serve.tumblr_mneezktcfK1rv0es8o1_500

Ocupamos sim um lugar no mundo e temos que bater o pé pela garantia desse nosso quadrado. Ninguém pode ou deveria poder ignorar ninguém. Gente não é rede social que você bloqueia, “aceita”, deleta. Sempre brinco – depende, claro, de meu humor – quando chego a algum lugar, onde preciso que alguém me atenda, tipo restaurante ou balcão de bar, e que se passam alguns minutos com a situação igual que nem eu não estivesse ali. Minha voz até vibra, potente. “Preciso quebrar alguma coisa para ser atendida”?

Você é o melhor no que faz, mas não é lembrado ou chamado para fazer o que ninguém fará melhor, disso você tem certeza. Precisamos repensar, já que tudo está mais moderno, que viveremos mais, tantos usos e costumes se modificando, sobre a forma como envelhecemos todos, mas queremos e precisaremos nos manter ativos e bem vivos. Porque quanto mais os anos passam, mais a tal transparência ataca, deixando todos diáfanos, pontilhados, parecendo água viva, só notada quando queima.

É preciso compreender que gente não é moda. Até porque se fosse, voltaria toda hora, igual calça boca de sino. Gente só é ultrapassada quando desiste, para de vez. Não pode ser esquecida de uma hora para outra, ou lembrada e festejada só quando morre, e entre lágrimas e lamentos de quem ali se tocar que tinha feito invisível quem estava o tempo inteiro ali por perto.

Os mais velhos são muito mais capazes de exprimir com sentimentos e detalhes essa sensação que sentem, mesmo dentro de suas casas – há uma expressão que a gente costuma usar quando algo está ali, mas faz tanto tempo que se agrega, já parece fazer parte inanimada do cenário, como que estancado em uma foto antiga: virou mobília.

tumblr_m49wslCdH11r4u9wdo1_400Eu, daqui, ainda não tenho – graças! – tanta reclamação a fazer já que continuo “exótica” como sou desde criança e de alguma forma difícil faço e torno difícil não me notarem. É também de outro olhar que falo. De querer continuar encontrando no olhar do outro uma troca de informação qualquer, um desejo, uma atenção, e até um esbarrão também pode ser bem bom, se é que me entendem. Não quero ser perpassada em vão.

Não quero pouco caso. Meu orgulho ainda é muito besta.

São Paulo. Água! – onde anda você? Preocupações, 2014

anim0014-1_e0Marli Gonçalves é jornalista Descobriu que há uma oração para São Cipriano, que se faz para criar um “manto de invisibilidade”, mas só para se proteger dos inimigos. Coisa para pedir aos espíritos, se neles acredita. Esses, sim, estão aqui, invisíveis. Acredite.

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