ARTIGO – Recordações, referências e revisões. Por Marli Gonçalves

Recordações despertadas por gatilhos. São lances de memória que explodem junto com os fatos e as coisas do presente, esse momento que logo vira passado, tão efêmero que é. O passado é assentado em algum lugar da memória, volta em golfadas. O futuro, ah, este é sempre o daqui a pouco.

Deve haver alguma gaveta, caixinha, miolo, não é possível que não seja assim, onde guardamos algumas lembranças, as especiais, que ficam arrumadinhas lá dentro até que algo acontece no caminho da vida, vira a chave e a abre, de lá retirando e nos fazendo reviver vividamente o outrora, seja bom, muito bom ou ruim, muito ruim. Esse gatilho chega com tamanha intensidade que é incontrolável. E só seu.

Aí está a questão que me incomoda não é de hoje. De alguma forma estas lembranças estavam guardadas também com outra pessoa ou pessoas que as viveram ou presenciaram. Deveríamos poder sempre consultá-las quando vêm à margem, de forma que pudéssemos checar se na tal gaveta onde guardadas estavam se modificaram, perderam ou ganharam sentido. Daí necessitar de referência.

Estou perdendo todas as minhas referências, e esse vazio – com o passar dos anos – causa uma profunda angústia. Muitas dessas pessoas partiram, e levaram com elas a possibilidade de comprovação de muitas coisas que eu contaria, por exemplo, em uma autobiografia que um dia talvez ousasse escrever. Chego a ter um pouco de inveja de quem tem mais amigos das décadas de vida. Tenho muito poucos e os mantenho como se fossem joias, mesmo que distantes. Triste que em cada uma das décadas que vivi alguns dos principais coadjuvantes foram levados. Várias formas. Muitos, nas epidemias, de Aids; agora nesta que vivemos de forma tão dolorosa nos últimos três anos. E agora? Quem vai me ajudar a recuperar com mais precisão as aventuras de vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos atrás?

Já os amores, alguns desses foram levados pelo vento, ainda nem lembro bem porque ficaram pelo caminho, por melhores que tenham sido no seu tempo. Os terríveis, e os vivi, sou eu mesma que tento assassinar de novo a cada lembrança nas vezes que chegam para a revisão. Alguns, muito bons, estão por aí ainda, mas não posso acioná-los, embora até devesse, por considerar que jamais deveriam ser esquecidos por nenhum dos lados como a mim parecem agora estar sendo – tal a intensidade, forma e o tempo de sua duração.

Tudo isso para dizer que também, igual você talvez, andamos perdendo muitos outros tipos de referências, Gal Costa, Erasmo Carlos, para citar algumas, e as suas mortes funcionaram como as tais chaves que guardavam as gavetas que se escancaram ao ouvir as melodias e letras que embalaram nossa existência em várias fases da vida. Elas escavam o passado sem qualquer controle possível.

Me vi esses dias com pouco mais de nove anos de idade, nas areias da praia de José Menino, em Santos, percebendo quando ocorreu o meu primeiro amor, e o quanto foi platônico. Lembrei o nome! Ivo. Vejam só. Era o namoradinho de uma amiga minha, mas desta não recordo de jeito nenhum como se chamava. Adivinhem, claro, qual música – aparecendo na biografia de Erasmo – despertou e resgatou esse sentimento com todas as sensações daquele tempo tão longínquo e esquecido até essa semana.

Não sei se já contei, também, que passei minha infância ali na Rua Augusta, que era o caminho dos ídolos da Jovem Guarda e todos seus amigos a caminho da então gloriosa TV Record. Quando podia, esperava na porta do prédio que eles passassem em seus carrões. Absolutamente apaixonada pelo Ronnie Von, “Meu bem” (Hey Girl), fazia questão de manter os cabelos lisos e compridos, com uma franja que jogava igual a ele quando cantava, alguns devem recordar exatamente esse movimento; era o príncipe dos sonhos naquele momento. Até há bem pouco tempo, inclusive, ainda me sentia intimidada quando – já bem crescida- o encontrava pela cidade.

Vejam só como eram belos e perenes os ídolos de outros tempos, e o que explica a comoção causada com as suas partidas. E como é grande o medo de continuar perdendo os meus próprios registros pelo olhar de outros. A torcida continua. Aquela. Vocês sabem qual.

https://youtu.be/_SpOyKv02rg

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MARLI GONÇALVES – Foi lindo respirar o ar da torcida pelo Brasil, a primeira vez em anos que pareceu todos torcerem em uma só direção, sem divisões. Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Para cantar quando o carnaval passar. Por Marli Gonçalves

casalzinho no sofá com musicaAgora a gente não se guarda mais para quando o carnaval chegar. Guarda e estoca coisas para quando o carnaval passar. Como as coisas mudam, não? Antes, falávamos em encher os canecos, e estávamos nos referindo ao chopp e à cerveja. As marchinhas hoje ganharam novos sentidos e vamos precisar por algum bloco na rua para que sejam ouvidas. Esse texto espera que você lembre as melodias para a gente passar na avenida

Mas não é só isso. Pensa só. Antes pensávamos em máscaras de carnaval, e elas eram lindas, luxuosas – “A mesma máscara negra/Que esconde o teu rosto/Eu quero matar a saudade/ Vou beijar-te agora/Não me leve a mal/Hoje é carnaval” …Agora a gente está vendo são máscaras com a fuça desses uns e outros feios desajeitados que escorregam no ouro negro, saqueado até antes de chegar a jorrar; ou tem de ver os meninos que já andam mascarados para fazer as arruaças que os divertem e deixam rastros de destruição. Podíamos até compor uma marchinha para os blackbobocas, os estraga-passeatas. “A estrela d’alva no céu desponta/ E a lua anda tonta com tamanho estupor”… ou “Seus panacas, seus panaquinhas, a polícia te pega, olha que a polícia te pega. Vem cá, seu bobo” …

hmem sambaNão quero deixar ninguém deprimido que sei que carnaval aqui no Brasil pra muita gente é igual à religião, só não sei se ainda dá pra cantar livremente “Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô, Mas que calor ô ô ô ô ô ô/Atravessamos o deserto do Saara/O sol estava quente/ Queimou a nossa cara/ Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô/Mas que calor ô ô ô ô ô ô” . Melhor perguntar antes, sem brincar com a burca de alguém.

Para não dizerem mesmo que quero estragar a festa, aderi e andei recolhendo uns trechinhos super legais e que você vai lembrar na hora. Tá, tá bom, fiz algumas modificaçõezinhas numas, mas certamente os autores me perdoariam, afinal, tudo é Carnaval. Nem vem também com a bobagem de dizer que São Paulo é o túmulo do samba. Aqui a gente não atravessa o samba. Atravessa ciclovias. Não pulamos carnaval. Pulamos buracos de rua e nosso cordão, se der bobeira, o pivete arranca.

“Ela critica o meu trabalho e até debocha, Eu sou pintor e ganho a vida com a brocha, Vivo pintando, o que não é nada demais. É à custa desta brocha, que ele faz o seu cartaz…” cantarola o prefeito (A Marcha do Pintor). “E o cordão dos puxa-sacos / Cada vez aumenta mais (bis)/Vossa Excelência / Vossa Eminência/ Quanta referência nos cordões eleitorais! / Mas se o “Doutor” cai do galho e vai pro chão/A turma logo evolui de opinião/E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais…”

SAMBA!
SAMBA!

Tá bom, o Brasil é maior que isso. “Ei, você aí/Me dá um dinheiro aí/ Me dá um dinheiro aí! /Não vai dar? /Não vai dar não? Você vai ver a grande confusão”… E para o governo novo e acontecimentos que nos cercam, “Eu sou o pirata da perna de pau/Do olho de vidro, da cara de mau/ Eu sou o pirata da perna de pau/ Do olho de vidro, da cara de mau”…

Lembrou da Petrobras? Tenho sugestões de cantilenas. “Acorda, Maria Bonita/ Levanta, vai fazer o café/ Que o dia já vem raiando/E a polícia já está de pé” … Ou: “Ai, a bruxa vem aí/ E não vem sozinha/Vem na base do saci. Pula, pula, pula/Numa perna só/Vem largando brasa/No cachimbo da vovó”.

“Bandeira vermelha, amor/ Não posso mais pagar a luz” …

Acaso já recebeu sua conta de luz nova, agora com sinalização? Pois bem, a bandeira vermelha começa a sacolejar e a gente que fica que nem maluco pulando de um lado a outro apagando tudo, sassaricando. “Sas-sas-saricando/Todo mundo leva a vida no arame/ Sassassaricando pego o arame para fazer um gato…” “Eu mato, eu mato, Quem roubou minha cueca pra fazer pano de prato” …
Cai, cai, cai, cai/Eu não vou te levantar/ Cai, cai, cai, cai/ Quem mandou escorregar? Acende a vela Iaiá, Acende a vela, que a Light cortou a luz/No escuro eu não vejo aquela carinha que me seduz”.

Nada mais atual, ainda, do que essa aqui, que a gente nem precisa aperfeiçoar: “Tomara que chova/Três dias sem parar/Tomara que chova/ Três dias sem parar. A minha grande mágoa/ É lá em casa/ Não ter água/Eu preciso me lavar/De promessa eu ando cheio” .

vianoce060“Quando eu conto a minha vida/Ninguém quer acreditar/Trabalho não me cansa/O que cansa é pensar/ Que lá em casa não tem água/Nem pra cozinhar” . Jakson do Pandeiro continua: “Tá chuchu beleza, tá chuchu beleza/Como tem mulher neste arrasta-pé, Tá chuchu beleza!” “Lata d’água na cabeça/ Lá vai Maria, lá vai Maria/Sobe o morro e não se cansa/Pela mão leva a criança/ Lá vai Maria” …

Mas eu queria cantar mais uma com você: “Chegou a turma do jatão/ Todo mundo rouba, mas ninguém dorme no ponto/ Ai, ai ninguém dorme no ponto/ Nós é que nos ferramos e eles que ganham muito”

“Eu tô só vendo, sabendo, Sentindo, escutando e não posso falar…Tô me guardando pra quando o carnaval passar…”

São Paulo, fevereiro, 2015, inacreditável!animation-art-born-this-way-born-this-way-lady-gaga-gaga-Favim.com-298127_large

  • animation-art-born-this-way-born-this-way-lady-gaga-gaga-Favim.com-298127_largeMarli Gonçalves é jornalista — Andando pelo mundo das marchinhas, achei esta, e adaptei para meu nome – virou Marlicota e fico bem mais bonitinha. “É a Marlicota com a direita/é a Marlicota com a canhota/é a Maricota com a direita/é a Marlicota com a canhota. Embodocou a minha vara, Marlicota/Veja que tamanho que tá/ Embodocou a minha vara, Marlicota/Veja que tamanho que tá”.

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