ARTIGO – É fogo. É faca. Zune no ar a palavra. Por Marli Gonçalves

O brilho cego de paixão e fé, faca amolada”. As palavras podem ser tão cortantes quanto uma traiçoeira faca, que também nos atravessou – a todos – numa ensolarada tarde em Minas Gerais. Uma semana que jamais será esquecida, e que botou fogo em um museu, numa história, e criou uma outra que será levada adiante muito tempo, todas transmitidas ao vivo.

As pessoas estão tão loucas nesse nosso tropical país que não bastou o atentado a Jair Bolsonaro praticamente ser transmitido ao vivo, registrado por inúmeras câmeras de celulares, em detalhes e vários ângulos. Elas queriam ver o sangue, vermelho, muito sangue, como veem nos filmes – aquele ketchup que jorra nas paredes. Então, muitas duvidaram. Duvidaram. Duvidaram durante horas, mesmo com informações minuto a minuto sobre a gravidade do ocorrido. Aquela gigantesca faca que um ser brandiu e enfiou 12 centímetros no candidato e na democracia, ferindo-a e expondo – ainda mais – as suas delicadas entranhas.

As chamas, as labaredas do fogo que consumiu objetos e detalhes milenares guardados no Museu Nacional do Rio de Janeiro, ainda fumegavam, mostrando um outro lado do descaso, da incompetência, da barriga que empurra, da corda rota que se estica até que rompa, dando vazão a todo mal que seguravam. Nem os deuses e divindades gregas personificados em imponentes e trágicas estátuas que do alto do telhado daquele Palácio a tudo observavam, do nada que restou de seu interior, e que como que estranhamente protegeram a casca do Museu, nem o próprio Oráculo de Delfos, creio, poderiam prever mais fatos dessa longa semana.

É a desordem, mais do que algo fora da ordem, estamos mesmo em um país com os nervos à flor da pele, caótico, dividido, raivoso. Do fogo e da faca surge a ignorância total, o desconhecimento e a falta de compromisso com a lógica e com a verdade, coisas sobre a qual ficamos evitando falar para não parecermos uns melhores do que os outros.

É mais séria do que poderíamos prever, no entanto, a situação. Muito além do frigobar instalado com fios desencapados no quarto do imperador, que o diretor do museu fez de seu para gabinete. Além dos pedaços de reboco que caiam tentando alertar, calados apenas por espaços e portas fechadas ao público, como vendas nos olhos. Quantas situações parecidas acompanhamos ainda silenciosos? Quantas ainda serão reveladas?

A faca que parou o candidato Jair Bolsonaro

Na política, o fogo das paixões, o caldeirão fervendo, a água derramando, e uma incompetente escolta policial veio à luz no brilho da lâmina brandindo à luz do dia e em meio a uma multidão. Não consigo deixar de ironizar a cada vez que ouço falar em “inteligência” seja nesta ou em qualquer investigação. Andava observando que em todas as aparições o candidato que se fez pela truculência aparecia cercado de brucutus muito assemelhados inclusive à velha e terrível imagem da supremacia branca: caras enfezadas, postura agressiva, seguranças particulares, seguidores da doutrina da bala, do armamento. Mas como tudo parece apenas virtual…

Entretanto, a realidade é sempre cruel. Ironia ter sido uma faca, não uma bala. Não há muito o que pensar se o autor é ou não desequilibrado mental. Parece óbvio que não é inteligente, autor de um atentado estudado, planejado, pelo menos não por profissionais. Preso na hora, sortudo por não ter sido linchado, é o exemplo da disseminação do ódio nas redes sociais, estimulado pelos dois lados dessa corda, os dois extremos. Queria matar, parece que sim. Queria ficar famoso? Quem mais?

Agora é acompanhar a saga médica, que começou estrondosa. Salvo da morte que se apresentou com sua foice, pela equipe de Juiz de Fora, em horas já ocorreram conflitos de equipes dos dois hospitais que disputavam, de São Paulo, o show em que já se transformou essa recuperação, essa eleição, e tudo o que virá em seguida.

Vídeos, fotos, gravações e declarações dispensáveis feitas de dentro de uma UTI. Boletins anódinos. Desfile de visitas que se apresentam à imprensa que dormirá nessa porta durante dias. Cobri a permanência de Tancredo Neves no Incor há 33 anos e vejo a exata repetição.

Como já relatado por comentaristas, os nove segundos que o candidato contava agora viraram 24 horas diárias, sete dias da semana. Talvez alguns anos para todos nós.

Nosso destino mais uma vez se desenrola de dentro de uma UTI.

mao-faca

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Marli Gonçalves, jornalista – É fogo na roupa. Fé cega, faca amolada. Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada

Brasil, 2018

marligo@uol.com.br e marli@brickmann.com.br

ARTIGO – Nada está normal, por Marli Gonçalves

AVIÕESme012Nada. Nadica. Absolutamente nada. Não é só aqui, não. É como se estivéssemos, terráqueos, em suspensão, pendurados pelos mamilos em ganchos, ou inertes, flutuando em gravidade zero. Parece que está todo o mundo esperando uma decisão, todos cheios de incertezas, e de toda ordem. Parece quando esperávamos que alguém ligasse no fixo e íamos toda hora ver se o telefone estava funcionando, se dava linha, se estava no gancho.

O inverno nem bem chegou e já há verdadeira queima de estoque de coisas do próprio. Nunca vi assim, todo mundo ao mesmo tempo fazendo liquidação, sale, oferta, off, desconto progressivo, ou até preço único, tudo por tal, por tanto, o que me cheira a um grande mistério. Se tudo podia ser vendido a esse preço, por que não o foi antes? Ou, quem chegar primeiro, com dinheiro, e entender melhor de negócios, rapa os produtos que realmente estarão mais baratos? Mas, enfim, tudo na bacia das almas, e se nem o tal Eike tem mais dinheiro, imagina a situação. Economia em frangalhos e a maldita voltando, infiltrada, remarcando com aquele barulho de maquininha de supermercado.scrub

É risco de rico. Coisas, pessoas e fortunas derretendo mais do que a calota polar em tempos de aquecimento global. Reputações que eram já eram, e as que já eram ruins pioram ainda mais. Se havia índice de confiança o ponteiro está no vermelho, junto com as contas a pagar. Na verdade verdadeira daqui a pouco vai estar todo mundo fazendo workshop com os índios para aprender como – quando ainda índios – eles vivem com tão poucos itens, parece que 80, ouvi certa vez. Vou gostar muito de ver mais gente de tanga.

deskNada está normal e não me venha dizer que exagero. Estar normal seria tão tranquilo como quando as mocinhas casadoiras completavam esse curso, o Normal, no Brasil. Antes, dava para ser freira. Ou normalista. Fora disso a mulher já era vista como revolucionária ou coisa pior. Estar normal é não ter muitos abalos, aquela vidinha pacata seguindo seu curso, uma certa rotina, monotonia. Qual o quê! Faz tempo que isso não rola. Montanha russa. Bicho da seda. Trem fantasma.

De um mês para cá, especialmente, quem pode se dizer “normal”? Vai pegar uma estrada? E se ela estiver bloqueada? Ah, marcou um compromisso ali naquela avenida famosa de sua cidade? Já consultou a agenda de manifestações do dia? Só essa semana, aqui em São Paulo, onde as coisas até que estão, digamos, mais tranquilas, teve um dia em que a Avenida Paulista registrou três passeatas, protestos ou assemelhados de uma vez só. No dia seguinte, do que contei daqui, foi fechada cinco vezes, dos dois lados da pista, por tudo quanto é motivo, juntando um, dois, ou 50 gatos-pingados, que agora cada grupinho quer carregar seu cartaz objetivamente. A coisa está até engraçada. “Foi a passeata que menos barulho fez!” – ouvi de um brincalhão quando este soube que um dos protestos era dos deficientes auditivos. Abafa o caso.1spy

Negócios? Todo mundo com medo. Futuro, planejamento, previsão? Tudo no espaço. Se for falar modernês, nas nuvens.

Noticiário? Bomba, bomba,bomba. Em algum lugar elas pipocam, letais e não-letais, com gases ou sem gases. Em Campinas, no país da piada pronta, querem pintar os manifestantes de rosa para identificá-los. Quando você pensa que está entendendo uma coisa, ela já é outra. Nem dá mais para se indignar direito: matam friamente uma criança atrás da outra; sacaneiam animais; nos golpeiam e debocham de nós. Insistem em nos jogar uns contra os outros.

work3Socorro! O piloto sumiu! Baratas tontas, parece que inalaram spray de pimenta jalapeno ou só o inseticida, puro. Anuncia uma coisa, fazem outra, depois dizem que não anunciaram não. Você que estava “viajando”; era só uma “alternativa”. Vai ser isso. Não! Vai ser aquilo! E se tentássemos isso? Vamos nos reunir para discutir, mas não vai dar tempo de fazer agora porque ficamos muito tempo reunidos. Meu sábio pai, que já viveu quase um século e viu vários momentos desses, acompanha o noticiário político como se fosse um jogo, e xinga o juiz, os bandeirinhas e os jogadores em campo. Aquilo até parece que lhe dá mais vigor. Pelo menos ele vem atualizando de forma impressionante os xingamentos que resmunga. Piiiiiiiiiii!

18Estamos apreensivos, com palpitações. Os mais jovens palpitam e são apreendidos. Se tem revolução lá fora, lá longe, acompanhamos como se fosse aqui, porque rebate na área. Nada mais é muito natural, e isso além de silicones e outras mágicas. A onda é alta e estamos surfando na crista dela, com um mar revolto.

Puxa, como gostaria de escrever sobre a poesia, a beleza do voo dos pássaros, mas quando olho e vejo aviões eles acabam é me lembrando que quem hoje voa por nossa conta já tentou cortar as nossas asas. Muito triste tudo isso. Muito triste.

O Estado está estarrecido, de mão dada com a Nação. O estado é de atenção.

São Paulo, diariamente, 2013 p55Marli Gonçalves é jornalista– Não me admira que eu tenha ido parar no hospital com um tilt que até hoje não entendi de onde veio, e achando que estava mesmo morrendo. Nada está normal. Mas, enfim, estou aqui ainda, o que deve estar querendo dizer alguma coisa. Ou não. ********************************************************************
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