ARTIGO – As segundas e os começos e recomeços. Por Marli Gonçalves

Ultimamente as segundas-feiras têm sido muito mais difíceis do que normalmente já eram. A sensação de começar mais uma semana, ver e ouvir a repetição dos fatos estranhos, uns atrás dos outros, sem reações que os possam deter; ao contrário, só pioram e se tornam mais ameaçadores. Na vida é assim: e até fazer aniversário anda parecendo mais uma segunda-feira

Garfield Archives — Portallos

Não é a preguiça, tão bem ilustrada na imagem do gato Garfield com sua imensa barriga laranja, e que ilustra as segundas malemolentes e um pouco mal humoradas. É o começo e o recomeço, que ultimamente tem parecido tão igual ao da semana passada, mês passada, ano passado. Bem sei que oficialmente a semana começa na segunda-feira, mas extraoficialmente, depois de passar o fim de semana tentando se livrar das cargas é nela que depositamos alguma esperança olhando para a frente, buscar fazer e acontecer, dia útil. Repete muito o que acontece na véspera de Natal, quando todo mundo parece ter sido acelerado e querer resolver tudo o que o ano inteiro não conseguiu. Se possível, sobrecarregando, inclusive, outras pessoas, passando os probleminhas adiante.

Aí ela chega. Primeiro, agora mesmo, nos daremos conta de que mais um mês se foi. Que o primeiro semestre do ano se completará. E a sensação da repetição, inclusive acelerada, de tudo o que tanto nos incomoda não passa.  É como se a realidade não admitisse o otimismo – e é, garanto, uma otimista inveterada, apesar de tudo, quem está aqui escrevendo.

Esperei passar várias segundas para finalmente admitir essa sensação. Talvez por agora ter me dando conta que fazer aniversário também virou uma segunda-feira, que a virada do mês também vai virar, para mim, logo, mais um ano completo de vida, e mais um ano – Graças a Deus, viva! – dentro da pandemia que abalou o mundo, mas destroça especialmente nosso país, pego em um dos piores e mais confusos, vergonhosos, perigosos e conturbados momentos de sua história.

Aniversários sempre são impactantes – o filme de tudo que se viveu, se sonhou, conseguiu ou não, passa na cabeça, e quando a gente chega mais longe, o filme vai virando longa-metragem. Quanto mais tempo, isso só vai ampliando, e creio que lá pelos 80 já se anunciará como uma daquelas peças teatrais do Zé Celso, do Oficina, com mais de cinco horas de duração e roteiro cada vez mais confuso e recortado.

A coisa toda está tão repetitiva que nem é preciso consultar videntes ou astros para conhecer alguns fatos do futuro: muitos ainda morrerão, inclusive pessoas próximas de nós e personalidades importantes que farão o país chorar de novo e de novo, suas histórias serão contadas; loas serão tecidos, e esperaremos as próximas; a política nos trará muitos desgostos, a divisão se acentuará, assim como os protestos, que serão incontroláveis, ou por radicalismo de algumas das partes ou pela dimensão da miséria, da fome, do desespero. Mulheres continuarão a ser desrespeitadas, e mortas. O racismo, negado como se não fosse evidente. Os ricos ficarão cada vez mais ricos. E os oportunistas surgirão, pululantes, sem disfarces, prontos a se aproveitarem de qualquer um desses fatos. Comentaristas comentarão. Comentarão muito. Os fatos serão conhecidos, e diariamente sobrepujados por outros numa repetição infinita e sem solução.

Do ponto de vista pessoal, os cabelos ficarão mais brancos, os tais fatos conhecidos cada vez mais iguais e tristemente repetitivos. Depositaremos esperança nas gerações futuras – alguns nos darão orgulho; outros, nojo. Nossa experiência se avolumará, e continuaremos firmes tentando alertar que conhecemos esses rumos, mas a rapidez que alimenta as redes sociais e esse atual tempo de vida digital talvez ignore e não dê a devida atenção ao que afirmamos e vivemos presencialmente, um estado raro que se esvai entre telas e emojis.

Assim, vamos indo vivendo – e que assim seja, Oxalá! – as próximas 52 segundas-feiras, e que muitos outros 365 dias venham. O desejo é que esses começos e recomeços sejam melhores, e que nunca falte energia para constantes revoluções interiores. Nem para as revoltas. Sem preguiça.

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Marli - foto Alê RuaroMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Os medos de dezembro. Por Marli Gonçalves

Difícil tocar nesse assunto desagradável, mas temos que bater a real: este dezembro será muito esquisito, tanto quanto quase o ano inteiro de 2020 foi, ou até um pouco mais, se novamente formos cobertos por mais uma onda alta sem que nem tenhamos recuperado o fôlego e já com nossa saúde mental tão afetada

DEZEMBRO

Lembro de fevereiro, o povo nas ruas, fantasiando suas liberdades e alegria atrás de trios elétricos, se espremendo, se encostando, se pegando, suor, brilhos, unicórnios, purpurina. Em quantas coisas ainda, persistentes, acreditávamos. Que Bolsonaro não resistiria mais muito tempo com suas sandices, que já ouvíamos sem acreditar que pudessem piorar, uma das principais. E, para aumentar mais ainda a desilusão de tudo o que os outros meses acabaram nos trazendo, o homem está aí, cada vez mais celerado e fora de si, criando fatos e nomeando pessoas que tornam ainda piores e incertos nossos dias.

No Carnaval e até antes, na passagem de ano, eu estava por perto, assistindo às festas nas ruas, mas já muito ressabiada com os ventos que sopravam do Oriente sussurrando uma doença que se espalhava pelo ar fechando cidades inteiras. Por precaução já tentava me manter mais longe, também até por conta do pânico de aglomerações, pavor que ganhei há alguns anos após um acidente no meio de uma delas. Sempre preciso estar perto de uma saída, sempre preciso saber como escapar, sempre preciso conhecer a área onde estou para me sentir segura. Agora não existe mais essa área, essa saída segura, o beijo, o abraço, e nem sorrisos mais são vistos.

Mas, admita, creio que nunca imaginamos de verdade o que poderia ocorrer aqui. O que aconteceu em todo o mundo. Que tantas vidas seriam levadas, de gente tão próxima, tão rápido. Que, ao contrário das ruas transbordantes, veríamos por meses portas fechadas, ruas desertas, capitais que viraram cidades mortas, fantasmas, onde transitavam apenas entregadores em motos e bikes. Que tanto álcool em gel seria usado em nossas mãos que se esfregam nervosamente. Que os rostos seriam cobertos por máscaras, e elas não eram de fantasias. Que nossos passos, o ir e vir, seriam determinados por regras governamentais. Que esse pesadelo se estenderia por todos esses meses, sem cura, sem solução.

…Adoraria afirmar que os alquimistas estão chegando com uma fórmula mágica. Mas a verdade é outra: os oportunistas estão chegando; estão chegando os oportunistas.

Que outra fase dessas viria e ainda há quem nela não acredite. Pior. Muitas portas permanecem fechadas. E as ruas? Lotadas, como se não houvesse amanhã, apenas outros dias anormais.

Agora chegou dezembro, e quando pensávamos que os caminhos estariam mais livres, eis que podemos ser cobertos por outra onda, e nem bem passou a espuma da primeira, que nos deu um caldo, afogou muita gente, detonou o país. Agora, ainda sem vacina ou proteção especial, estamos sem recursos, cansados, descrentes ao ver que pouco se aprendeu, e que muitas pessoas, principalmente jovens, estão preferindo apostar no pior, pouco se importando se espalham vírus que matam gente que elas nunca chegarão a conhecer ou nem a saber que foram as culpadas.

Pensam, talvez, que estejam praticando a liberdade, a desobediência civil? Exercendo “sagrados direitos inalienáveis”, curtindo a clandestinidade, desafiando o proibido, ou apenas vendo se adiam um pouco mais a volta às aulas onde aprenderiam que o futuro poderá penalizá-los de forma cruel por essas atitudes?

Como passaremos esse final de ano me parece um grande mistério, entre os maiores que já vivi. Há festas marcadas, lugares com reservas esgotadas. Como fechar as praias onde estarão indo e vindo as irresistíveis sete ondinhas a serem puladas? Que regras serão impostas? E quem as fiscalizará de verdade? Como as famílias se reunirão, sendo que algumas não tiveram contato entre si todos esses meses até agora? Como preservar os idosos?

Com a economia no buraco, a miséria e o desemprego, será que este ano vai bater aquele sentimento comum às festas de fim de ano quando todo mundo vira bonzinho da forma muito superficial, e quem pode finalmente abrirá a mão, o bolso, dividirá o pão? Ou alguns desses que podem, que mandam e desmandam, apenas aproveitarão para poder mais, dar ordens que não deviam, fazer muxoxo dos que se protegem, fazendo que um outro vírus que já se aproxima célere espalhe ainda mais incertezas?

Adoraria afirmar que os alquimistas estão chegando com uma fórmula mágica. Mas a verdade é outra: os oportunistas estão chegando; estão chegando os oportunistas.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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