ARTIGO – Estranhos dias. Por Marli Gonçalves

Novamente vou ter de me socorrer com você, perguntando se a sensação de que, de alguma forma, os dias andam meio estranhos, se é sensação só minha ou se você também definiria assim. Eu não sei nem ao menos descrever exatamente como ela é – está ali pinicando. Não é de todo negativo, nem chega a pressentimento, mas incomoda porque nos obriga a estar alertas, ligados. Inquietos. É isso? Só para eu saber.

Estranhos dias de um estranho país. Entenda por estranho todas as definições da palavra: atípico, fora do comum, diferente, misterioso, que não se conhece; que apresenta mistério, que tende a ser enigmático. Por fim, que causa um sentimento meio incômodo.

Por exemplo, vamos tomar a greve geral convocada para essa semana. Foram verdadeira, real e totalmente esquizofrênicos os dias anteriores – até o maior telejornal do país fez de conta de que não existia, que não tinha nada acontecendo – e, mais ainda, o dia da dita cuja.

Antes, o mundo se dividiu em: pessoas que não têm a menor ideia do que é uma greve geral; os que esqueceram que uma dessas da boa deve contar com uma soma de reivindicações que sejam da ampla maioria para funcionar, expressiva; até aos que associaram tudo apenas aos petistas ou aos preguiçosos ou aos que apenas queriam emendar o feriado. Era besteira de tudo quanto é lado. E até agora, horas depois, eu ainda não descobri exatamente a pauta política além dos sindicatos. Só sei que vivi para saber que quando centrais inimigas se unem é porque tem muito caroço no angu. E não é para o prato do trabalhador.

Os de sempre que apoiam os que foram e hoje estão em grandes apuros comemoraram vitória como se não houvesse amanhã e que alguma coisa vá mesmo mudar, além da queima de estoque de pneus, o prejuízo do comércio, os feridos, os ônibus-tocha, o festival de bombinhas de efeito moral e o sapecante gás pimenta (curiosidade: quanto custa cada lata dessas?). Ôpa-ôpa. Realmente conseguiram parar o país. Isso não dá para discutir, mas eles não podem acreditar que milhões de pessoas aderiram e os apoiam. Não tirem o pé do chão, por favor, não viajem nesse orgulho que os farão perder ainda mais o foco. E é preciso que haja oposição. Sempre. Mesmo que desordenada. Igual placa no metrô: deixe a esquerda livre.

Sim, parou tudo. Aqui em São Paulo não vi um ônibus na rua. Enfim, se pararam os transportes, ônibus, metrô, trem, muitas pessoas que não sabem nem onde estão parados mas que têm de bater ponto para comer, não puderam ir aos seus trabalhos e viraram …grevistas! Ninguém perguntou a eles, como na igreja, no casamento: “É de sua livre e espontânea vontade a decisão de não comparecer ao trabalho hoje, em protesto contra… contra” …

Contra o que mesmo que era?

Não me agridam, nem quem achou que não houve nada (houve sim), nem quem achou que foi o maior sucesso. Não foi. Está tudo muito estranho!

No mesmo dia era divulgado que 14 milhões e 200 mil pessoas estão desempregadas, e procurando trabalho, que é o que as coloca dentro dessas estimativas. Imaginem – e vocês conhecem, estão vendo, sentem na própria pele, os milhões que desistiram e estão se virando por conta própria, inventando novas formas de sobrevivência.

No mesmo dia também ficamos sabendo que o Brasil tem 17 mil sindicatos, garantidos por um dia de trabalho suado que até agora era tirado compulsoriamente do salário. Será por não quererem que acabe essa baixa fresca que as centrais se uniram? Será?

Já fomos mais legais que isso tudo, que estas picuinhas. Tudo agora racha. Num sei o que racha opiniões; num sei o que lá divide as pessoas. Tudo racha. Racha para lá. Racha para cá.

Maio chega sem graça, e com perspectivas de notícias tenebrosas vindas do Oriente que sacudiriam toda a humanidade. Mais dias estranhos e tumultuados vão sendo agendados, e cresce o desconforto com tudo. E a falta de opções para nada disso.

___________________

portrait perfilMarli Gonçalves, jornalistaPare do lado de grupos de pessoas conversando. Como quem não quer nada escute só sobre o que elas estão conversando. É muito estranho. Fiz isso lá no dia da greve. Voltei para casa correndo. E achando tudo muito mais estranho ainda.

Maio, 2017

________________________________

marligo@uol.com.br

marli@brickmann.com.br

@MarliGo

ARTIGO – A manada está solta. Por Marli Gonçalves

A manada está solta

Marli Gonçalves

 Abra os olhos. Feche portas e janelas. Tranque tudo. Se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come

Resultado de imagem para manada animated gifs

As cenas foram terríveis, chegaram mesmo a ser aterradoras. Vimos pela televisão a invasão de lojas e os saques acontecendo à luz do dia no Espírito Santo. Crimes de toda sorte, assassinatos, assaltos. E os saques. Mais de uma semana de terror, o medo, as ruas vazias e aqueles grupos enormes de pessoas muito agitadas, excitadas, carregando tudo o que podiam, em hordas.

E uma população simplesmente refém, acuada, impotente. Especialmente não acreditando que vivia tudo aquilo por causa da… polícia! O pessoal do Mal, os bandidos – a notícia correu rápido nas bocas –, se espalhou rapidamente, como que acordados para um sonho de um Estado sem polícia. Botaram suas melhores camisetas, máscaras, pegaram suas armas e foram para as ruas num carnaval antecipado.

A surpresa foi o número de outras pessoas entrando na confusão, somando-se ao outro lado da força em um impressionante transe de inconsciente coletivo. Tanto que poucas horas depois as delegacias começaram a ficar entulhadas de devoluções. Foi como se, ao chegar em casa com os objetos, um estalo tenha ocorrido e feito despertar as consciências. Há muito não se via um efeito manada desse porte. Marcantes esses dias.

Não há como não parar para refletir sobre uma semana como essa em que ainda fomos esbofeteados em todas as direções, pá, pá, e pá, continuamente humilhados com decisões governamentais e parlamentares. E atiçados com informações estarrecedoras entrando em nossas veias bombeando nosso sangue. Bombardeando nossa paciência.

Faz-se o silêncio nas arquibancadas e avenidas, as bandeiras nacionais estão murchas. Mas nas esquinas e becos, aqui e ali, já ouvimos sérios murmúrios, uma água que começa a ferver no caldeirão. Vocês estão se dando conta disso?

Aqui que eu queria chegar. No paralelo das manadas que vimos em ação no Espírito Santo, e no perigo que reside nesse enorme inconsciente coletivo nacional no qual os grandes mestres da psicologia, psiquiatria e psicanálise Jung, Freud ou Fromm teriam adorado mergulhar para tentar entender a dimensão. Eles pirariam. Não há racionalismo nas explosões.

A ideia de bloquear as portas dos quartéis já começa a pipocar em outros Estados. Mal saímos de uma centena de cabeças cortadas em prisões, perigosos e esquecidos fugitivos. Não nos recuperamos da fala do “acidente pavoroso”. E em um momento como esse o ministro da Justiça deixa sua cadeira, onde já havia sido absolutamente inoperante em todos os fatos, porque é premiado! Indicado ao Supremo Tribunal Federal – posto ao qual para galgar tem passado os dias beijando mãos, cruzando pernas, pedindo bênçãos exatamente daqueles a quem poderá ter de julgar em futuro muito próximo. Há algo naquele olhar que me incomoda. Reparem na mosca azul pousada sobre a sua cabeça.

E o outro? O “homem”, uma semana depois de mais cem mortos numa guerra urbana, e de nem pensar em pisar lá na terra, mas do alto do seu Olímpico Planalto, declara com cara de quem está falando alguma novidade que a greve dos policiais é “inaceitável”, manda uns querubins baixarem lá e tentarem por ordem no pardieiro.

A impressão é de que vivemos num pesadelo, e meu medo é esse tal de inconsciente coletivo começar a atacar de novo; e será cada vez mais forte.

Mas ao mesmo tempo respiro um pouco mais aliviada quando vejo que há sim outro lado que também vem despertando na mesma dimensão e que poderá mudar o rumo dessa prosa. É a consciência coletiva, a força da solidariedade que também vemos surgir em situações excepcionais e que precisa também ser observada e incentivada. Gente se unindo para fazer coisas boas, grupos que se ajudam mutuamente, preocupações positivas.

Quem sabe a gente não consegue gerar um efeito manada do Bem?

Resultado de imagem para manada animated gifs

____________________

IMG_20170209_231305

Marli Gonçalves – Nada bom o andar dessa carruagem.

São Paulo, 2017

____________________________________________

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br/ 

@MarliGo