ARTIGO – Se os carros falassem. Por Marli Gonçalves

Os carros andavam em total baixão, dispensados sem dó, trocados por Ubers, motos, transporte coletivo, bicicletas, patins, rodinhas, patinetes. Agora? Voltando gloriosos, cheios até de sentimentos, vejam só. Avançaram muito junto às famílias dos humanos nesse ano pandêmico, uma coisa impressionante. Faltam falar. Se bem que…
carros

Alguns até meio que  já falam. Cada vez mais digitais, com controles ligados à internet, redes sociais, aplicativos e câmeras que praticamente os manobram sozinhos para os motoristas na sempre odiada baliza. E dizer que aquele apito que davam ao se aproximar do carro de trás e da frente nas estacionadas já era um avanço. Pensar que suas piscadas de luzes no painel já eram alguma interação, e que os barulhos que emitiam de repente tentavam a comunicação com seus donos. Que os “grilos” já eram uma linguagem.

Agora? Entraram na nova e gloriosa era do Drive-thru, do Drive-in, este completamente modificado do que outrora, verdadeiros motéis mais baratos e descomplicados. Têm vez. Já meio que falam; robóticos, mas se comunicam. Alguns até se recusam a sair do lugar, empacados como mulas, enquanto não estiver tudo ok, todos com cintos de segurança, portas travadas, coisas assim. Até a chave da partida anda virando é botão de apertar.

Nesse 2020 frequentam pomposos – juntinho com suas donas famílias – o cinema, o teatro, casamentos, shows, e essa semana os vimos em comícios e, inacreditável, até na igreja, fiéis. A Marcha para Jesus, a grande e anual manifestação evangélica liderada pela Igreja Renascer, este ano não foi marcha; foi carreata, com mais de dez mil, entremeada por trios elétricos. E terminou com 1500 deles no Anhembi em São Paulo, assanhados, ouvindo discursos e cânticos, além de shows. Tive dúvida de um detalhe: na Marcha, os fiéis costumam usar papeis dentro de seus sapatos, debaixo de seus pés, onde colocam os pedidos, as graças alcançadas, e sobre as quais andavam nas grandes caminhadas. Esse ano não sei como foi feito, se os pneus tiveram alguma participação.

Pois bem, não é que eles, os carros, participam ativamente das solenidades? Buzinam, piscam faróis, o som do rádio num frequência especial repica lá dentro o que está no palco. Faltam bater palminhas. São eles que manifestam os sentimentos de seus donos. O velho Herbie, o fusca do famoso “Se o meu fusca falasse”, o 53, criado em 1968, deve andar por aí todo deprimido com tantas novidades.

Mas não para aí. Antes, nos fins de semana, os amados carros eram lavados, polidos, vistos brilhando nas portas das casas – era comum ver isso. O orgulho da propriedade. Seus donos eram levados por eles para paquerar (sim, essa é a expressão) outras pessoas, em outros carros. Na Rua Augusta houve até um programa de rádio que era feito exclusivamente para ajudar esses encontros – na ladeira, carros rodavam subindo e descendo – emitindo recados, onde eram eles os citados. “A loira do fusca azul” quer falar com o “rapaz da Belina amarela”. Era bem legal.

Agora? Já tem até apartamentos sendo feitos especialmente para que eles – os carros! – possam ser guardados dentro de casa, tipo na sala – sobem pelo elevador. E você achava que o Eike Batista que guardava um dos dele, especial, na sala, era maluco? Pois bem, um sertanejo desses aí acaba de comprar um apartamento assim, lá em Goiânia – e divulgar pra quem quiser babar. Tudo bem, já sei, você aí não tem espaço nem onde deixar sua bicicleta…Fazer o quê? Quem pode, pode.

Sempre estranhei um pouco essa coisa, muito paulistana, inclusive. Via gente que, se pudesse, levava o carro para sentar na mesa do restaurante. Agora a coisa se adiantou. Há várias montadoras que até antes das pandemia já desenvolviam estudos acelerados para implantar a inteligência emocional nos novos bichinhos que, assim, seriam capazes até de “conversar “com os seus motoristas (claro, também há estudos para que não precise mais nem de motoristas nos carros autônomos). Eles discutiriam futebol, por exemplo. Perceberiam se o cara está com sono e o despertariam “puxando assunto”. Uma humanização. Já houve experiências que mostraram carros emitindo sentimentos reais, pedindo beijos, abraços, carinhos. Piscando, mandando beijinhos pra quem passasse por eles.

Enquanto esperamos que os carros ao menos não sejam mais usados para matar, guiados por bêbados ou irresponsáveis, ficamos por aqui, sonhando se algum dia teremos como comprar essas novidades bem caras, distantes dos comuns.

Eu, por exemplo: coitado do meu “Poiszé”, tão antigo que ainda é totalmente manual, analógico. Até para ver o velocímetro – e respeitar velocidades máximas – tenho de contar risquinhos. E quando o Waze fala “em duzentos metros vire à direita” tenho de calcular nos dedos olhando o odômetro. Ó, vida!

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marli

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Placas, sinais e desvios. Por Marli Gonçalves

 O sinal está fechado para nós, todos, os que são jovens, os que já passaram por isso e os que estão chegando.  O tempo passa ligeiro, alta velocidade, e sempre parece que estamos na contramão, sem saber para que lado virar, quando parar. Acabamos sendo multados por isso.

Desde muito criança tenho a mania de ler tudo o que passa pela frente.  Os letreiros das lojas, as faixas espalhadas pelas ruas, os cartazes, os muros. As placas dos carros, inventando expressões e frases surgidas com as três letras. No final do dia o cansaço urbano, incluindo a falta de horizontes daqui de São Paulo, onde procuro frestas entre prédios para espichar o olhar. Não admira que nossa visão seja tão embaçada.

A desorientação é geral.  A da realidade, de nossos caminhos.  Que nos fazem perder-nos sempre e que agora até se julga possível de reverter com aplicativos , mostrando os traçados que bem entendam que devamos seguir. Mas que nos fazem perder ainda mais. Experimenta precisar de orientação: as placas não estarão lá, ou estarão tortas, chutadas, pichadas, sujas, cobertas, erradas.

Por aqui a coisa anda ainda pior, porque é ao léu, ao vento da decisão de algum gênio dentro de algum gabinete. De repente criam uma faixa que não existe, uma ciclovia feita por cones patrocinados de um banco, revertem a mão de direção e você tem de andar e olhar no relógio porque é confusão total de horário para ir e vir. Apareceu agora a mania de pendurar faixas horrorosas atravessando as avenidas e que, se quiser saber qual é o alerta, é melhor parar e ir a pé bem debaixo delas para tentar ler toda e tentar entender o que dizem, sempre com sérios problemas de pontuação.  Já vi uma de cinco linhas, e as letrinhas, Ó, o tamaninho delas. A tal faixa exclusiva de ônibus funciona de tal hora a tal hora, mas só depois de uma outra tal hora, dependendo se se é sábado, domingo ou feriado. Se está quente ou frio, seu sexo, se gosta de azul ou de vermelho, se tomou café-da-manhã, etc.

Sinceramente, anda difícil fazer tudo direito. E preciso lembrar que a tal famigerada faixa de ônibus, que você tem de invadir em alguma hora ou para procurar caminhos ou para poder virar para onde está indo, custa uma multa de infração gravíssima. Tão sem nexo porque igual a que tomam aqueles caras que todo dia a gente vê matando ou aleijando as outras pessoas nas ruas, atropeladas, ou porque estão bêbados e resolveram barbarizar. Gente que anda armada com a direção, pedais e rodas.

Não tem como não fazer um paralelo com o momento que vivemos, essa confusão sem precedentes e que parece um buraco sem fim. É o vai não vai, o não-anda-nem-sai-da-frente, lombadas, obstáculos, desvios, guinadas mal sinalizadas que nos pegam desprevenidos.

Estradas que não dão em nada, pontes que não ligam nada a lugar algum. Ruas sem saída. Rotatórias que nos fazem ficar girando em torno do mesmo assunto, como se outros caminhos nos fossem bloqueados.

Sem direção e congestionados, com duas dezenas de candidatos que se atropelam e que não sinalizam para onde querem nos conduzir, entre eles alguns veículos bem antigos e ultrapassados que já pararam e nos deixaram na mão várias vezes quando mais precisávamos.

Precisamos urgente rever nossas orientações, nossas placas. Que sejam escritas em bom português. Fora. Chega. Não. Já vai tarde. Não somos idiotas. Parem. Cuidado com nossas crianças. É hora de mãos à obra mais à frente.

Que não nos multem mais por seus próprios erros e omissões.

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Marli Gonçalves, jornalista – a minha predileta é “É Proibido Proibir”.  Muito boa para agora, essa época de fazer Carnaval com tudo.

Brasil, desorientado, 2018