ARTIGO – Ô Véi, vamos falar dos véios? Por Marli Gonçalves

peo-_dancer_old_dudeÉ véi para lá. Véi pra cá. Fala aí, véio! No pobre linguajar que se instala na nossa população o vocativo “Véi” virou uma daquelas pragas – de gíria e de muleta oral e verbal – que ninguém sabe onde começou nem quando vai acabar. O problema é que a rapaziada não sabe nem que o tal Véi/ véio que eles chamam significa velho: dito com uma certa preguiça, sarcasmo e ironia característica da geração net, velho virou véi. Todo mundo é véi hoje, sem lembrar que vai mesmo ser véio um dia e precisar de alguém, de algoAntes era tia/tio. Vá lá, mas se usam para me chamar já levam pernada. Agora é Véio, isso, Véio, aquilo. Eles – os velhos, os idosos, os anciões – portanto, estão na boca do povo. Não dá para dar um passo sem ouvir o Véio em alguma boca por aí, até nas entrevistas. Mas, véio, seria legal que também estivessem nas suas cabeças, com mais gente pensando sobre isso, cuidando disso, falando sobre isso. O Brasil tem mais de 20,6 milhões e já outros muitos quebrados de idosos, 13% da população. Em 50 anos, quando creio que não estarei aqui para contar e ser mais um neste número ao qual logo logo pertencerei, serão mais de 58 milhões de idosos. Cada vez mais vivendo mais, causando, consumindo, querendo votar, podendo ser votado. (Aqui eu estou tentando valorizá-los nesse aspecto, mais junto aos políticos, para que se voltem ao assunto, já que gostam de dinheiro, poder e …de votos! para ter dinheiro e poder).old people

Os velhos são fontes de luz e conhecimento, e podem colaborar com a sociedade até o finzinho de suas vidas, desde que ajudados, mais preservados, respeitados. E pode ter certeza: é o que querem fazer; até tentam, mas ainda são desprezados. Vejo casos de arrepiar de destratos, abandono e desinteresses por mais velhos, violência contra eles (outro dia um babaca universitário de merda quase matou um de porrada porque reclamou do barulho). Não há políticas públicas, atendimento. A maioria dos analfabetos vive no Nordeste e é idosa. Grande parte sem uma moradia adequada, sem recursos básicos e infraestrutura sanitária decente. Muita gente querendo beliscar seus caraminguás.

É difícil envelhecer. Sem dinheiro, então, mais ainda. Sem apoio, quase impossível. E estou afirmando com isso que não é só para eles que não há atenção. Cada vez é mais difícil para as famílias cuidarem de seus idosos. Remédios pela hora da morte. Planos de saúde sádicos e caros, muito caros. Mais fácil escalar uma montanha no Nepal do que poder pagar por um. Sem investimentos em casas de repouso, clínica para os que sofrem de males incuráveis, cuidadores bons, raros, caros e disputados, inflacionados. Não têm calçadas seguras para caminhar, equipamentos disponíveis, políticas públicas, orientação social, proteção legal, não têm, não têm, não têm também. É preciso tudo, mas principalmente com agilidade. O tempo urge. Carimba URGENTE no assunto.

Vivemos, nós, familiares, filhos ou filhas – e estou falando de muitas pessoas da minha geração que estão passando por esse dilema, um momento particularmente difícil, o fim, já que ninguém fica para semente e não inventaram a tal poção da juventude e nem ninguém aí tem pai ou mãe vampiro, imortal. Para nós, cada dia é uma surpresa, uma aventura, um compasso, um passo à frente na madeira do trampolim. A gente assiste (e ouve) dores, reza, sopra aqui e ali, ama, protege, chega a pedir a Deus que pare as tais dores, ou até, que se possível fosse, as transfira todas para nós. Por que não se fala nisso? Por que não somos notados? Nem os véios de verdade, nem nós, os que estamos com eles. Parecemos invisíveis, e muitos de nós cuidamos de idosos que já não sabem nem mais quem somos, ou são mais frágeis que louça fina. Sempre há um que fique com a responsa, carregue mais, se sacrifique mais, tente segurar o relógio do tempo.

oldsEssa semana meu pai fez 97 anos. 97. Tem noção? 35 mil, 405 dias. 849 mil e 720 horas. Começo do século passado, uma guerra mundial, várias revoluções e rebeldias, proibições e liberações, ganhos e perdas. Não, ele não fala sobre isso, porque o que passou de dificuldades para sobreviver desde a infância, vindo de paragens até hoje esquecidas do Amazonas, pulando de cidade em cidade, não mais o interessa. Ou prefere esquecer, o que compreendo porque foi uma vida toda difícil. O pouco que sei são informações esporádicas -só gosta de lembrar que comia jacaré e tartaruga, essa inclusive fornecia o prato com o seu casco. Da família, dos muitos irmãos, nada sobrou, que eu saiba. Minha avó, índia com nome dado de pedra preciosa, Esmeralda, morreu dando à luz a mais um caboquinho, que seria um tio se o tivesse conhecido, num barquinho no meio do Rio Negro. Do avô, o português, nada sei.

Com algumas capenguices, lúcido, mas com dores em todo o corpo e o constante lamento delas que não há como contornar a não ser com analgésicos paliativos. Trabalhou até os 90 anos de idade, desde os 10 anos, mas recebe hoje – e com toda sorte de obstáculos e dificuldades impostas por INSS e bancos – um salário mínimo. O mesmo que as parideiras do Bolsa Família recebem e, em geral, só começando nove meses antes pela parte boa.

Vivo o que falo. Mantenho meu pai vivo, da melhor forma que posso, me renegando outros prazeres; assim tentei manter minha mãe até o fim. Sobre o assunto, fui olhar o que o governo está fazendo e encontrei um mundo cor de rosa, cheio de cargos com nomes quilométricos, tipo “Coordenadora do Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso”, fora burocratas declarando que estão fazendo algo. Tive um ataque de riso quando li um desses burrôs do aparelhamento festejando estarmos na 31ª posição no ranking dos países que oferecem melhor qualidade de vida e bem-estar a pessoas com mais de 60 anos, segundo o Global AgeWatch. E enjoei de vez quando li um outro falando no programa de atendimento domiciliar e cuidado hospitalar garantido. Em qual país? – por favor, me diga!

Deus tá vendo. Deus tá vendo. E, como logo gírias e expressões são rapidamente substituídas e essa semana, Véi!, apareceu mais uma, acho mesmo que no geral, ainda, quando pensam nos mais velhos, pensam mesmo só como aquela fala do comendador no último capítulo da novela, ao balear seu inimigo:

– “Morre fela da pota!”

São Paulo, 461 anos de idade, muitas dores e decrepitudes, 2015.miror veioMarli Gonçalves é jornalista – – Depender da caridade alheia é mortal. Da boa vontade e compreensão dos parceiros e parceiras, então, chega a ser cruel. Acreditem. Vamos falar disso agora, porque todos estaremos chegando lá, juntos. Ou “juntos, chegaremos lá!” como diz sempre um político que hoje está aí no ministério das 40 cabeças.

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ARTIGO – Quando ficamos transparentes. Por Marli Gonçalves

Walking-man2_thumbEm que dia? Que momento? Aqui pelo meu lado não fez barulho, nada, nem um clique. Um dia percebi que havia ficado transparente, só podia ser isso. Estranho, quando a gente vai envelhecendo, ou amadurecendo, começamos a ficar meio invisíveis para um monte de coisas de que a gente não gostaria. Não gosto nada disso. Se bem que tem hora que é bem legal desaparecer, mas só quando nós temos o controle total disso.walking

Não. Não é que você suma. Não é isso. Só não te veem. Parece que fica transparente, invisível, especialmente em determinadas situações. As pessoas quase te atravessam, tanto com o olhar como até de forma física, fato que, aliás, aproveitando o assunto geral, anda me irritando sobremaneira. Você está lá andando na rua, na sua linha, e vem vindo alguém igual a uma toupeira e que espera que seja você quem desvie o seu caminho para ela passar gloriosa. É como se ela não te visse, ou pouco se importasse. Comigo não, violão! Viro um tronco. Fico que nem um soldadinho marchando, durinha; mantenho meu passo, e já me preparo para rosnar bem claramente, se o adversário olhar feio e aí me notar, ou esbarrar, em geral distraídos com os seus celulares, filhinhos ou amigos. Fico igual ao tigre que avisou muito ao menino que estava bem nervoso, antes de arrancar-lhe o braço. Tudo tem limite.

Sou baixinha, mas invocada. E se tinha coisas que já me irritavam antes, agora que sou mais eu, com o passar dos anos, o bom é nem precisar deixar barato. Vejam só: sempre fui tida como meio, digamos, exótica, a palavra que tiram da cartola cada vez que tentam definir meu estilo. Não é mau ser exótica. Não é isso. Mas é que sei bem o cisquinho de crítica que o adjetivo contém. Exclui um pouco você do mundo. Mas, enfim, isso quer dizer que sou sim – ou era – notada por ser diferente.

space_glove_animationPor causa de um projeto, que em outro dia conto qual é, tenho procurado saber mais e pensado muito nessa coisa das mudanças todas (e muitas, tolas) que vêm com o tempo e sobre as quais precisamos fazer igual ao bobinho slogan do Aécio Neves, precisamos conversar. São porque são. Tenho falado mais com pessoas da minha idade, ou com um pouco bem mais. Foi quando descobri que um dos maiores problemas do amadurecimento não é cair da árvore – é a invisibilidade. Mulheres reclamam, homens reclamam disso. Pelo que andei vendo, inclusive, quem tem filha ou filho crescido parece que sofre mais ainda, porque aí há um parâmetro de comparação. Eu não tenho filhos, mas já tive essa sensação de inexistência quando saía com minha cadela husky pelas ruas há alguns anos. Ela era linda, branca, olhos azuis, e todos os olhares se voltavam quando passava, como se a dona aqui, do outro lado da guia da coleira, fosse invisível.

Por um lado havia o orgulho. De outro, certo desapontamento quando desejava que aquele olhar, particularmente, fosse para mim. Não é uma questão sexual apenas. Mas ninguém quer ou gosta de não ser visto. Toda mulher passa seu batonzinho, arruma o cabelo, pinta as unhas – feias, gordas, casadas, solteiras, bonitas – para que outras e também outros apenas reparem. Uma vista-d’olhos serve.tumblr_mneezktcfK1rv0es8o1_500

Ocupamos sim um lugar no mundo e temos que bater o pé pela garantia desse nosso quadrado. Ninguém pode ou deveria poder ignorar ninguém. Gente não é rede social que você bloqueia, “aceita”, deleta. Sempre brinco – depende, claro, de meu humor – quando chego a algum lugar, onde preciso que alguém me atenda, tipo restaurante ou balcão de bar, e que se passam alguns minutos com a situação igual que nem eu não estivesse ali. Minha voz até vibra, potente. “Preciso quebrar alguma coisa para ser atendida”?

Você é o melhor no que faz, mas não é lembrado ou chamado para fazer o que ninguém fará melhor, disso você tem certeza. Precisamos repensar, já que tudo está mais moderno, que viveremos mais, tantos usos e costumes se modificando, sobre a forma como envelhecemos todos, mas queremos e precisaremos nos manter ativos e bem vivos. Porque quanto mais os anos passam, mais a tal transparência ataca, deixando todos diáfanos, pontilhados, parecendo água viva, só notada quando queima.

É preciso compreender que gente não é moda. Até porque se fosse, voltaria toda hora, igual calça boca de sino. Gente só é ultrapassada quando desiste, para de vez. Não pode ser esquecida de uma hora para outra, ou lembrada e festejada só quando morre, e entre lágrimas e lamentos de quem ali se tocar que tinha feito invisível quem estava o tempo inteiro ali por perto.

Os mais velhos são muito mais capazes de exprimir com sentimentos e detalhes essa sensação que sentem, mesmo dentro de suas casas – há uma expressão que a gente costuma usar quando algo está ali, mas faz tanto tempo que se agrega, já parece fazer parte inanimada do cenário, como que estancado em uma foto antiga: virou mobília.

tumblr_m49wslCdH11r4u9wdo1_400Eu, daqui, ainda não tenho – graças! – tanta reclamação a fazer já que continuo “exótica” como sou desde criança e de alguma forma difícil faço e torno difícil não me notarem. É também de outro olhar que falo. De querer continuar encontrando no olhar do outro uma troca de informação qualquer, um desejo, uma atenção, e até um esbarrão também pode ser bem bom, se é que me entendem. Não quero ser perpassada em vão.

Não quero pouco caso. Meu orgulho ainda é muito besta.

São Paulo. Água! – onde anda você? Preocupações, 2014

anim0014-1_e0Marli Gonçalves é jornalista Descobriu que há uma oração para São Cipriano, que se faz para criar um “manto de invisibilidade”, mas só para se proteger dos inimigos. Coisa para pedir aos espíritos, se neles acredita. Esses, sim, estão aqui, invisíveis. Acredite.

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