ARTIGO – Perdi. Por Marli Gonçalves

setimo-selo-gifA sensação louca de guerrear com um inimigo de que a gente não conhece o tamanho, mas sente a gigantesca dimensão, teme a força que se aproxima muito rapidamente de quem a gente ama, avança para levar esse ser embora com ela. A Morte nos deixa dialogar e faz queda de braço, mas também nos ensina muitas coisas para podermos seguir em frente

Não é tão elegante nem poético como no filme de Bergman no qual a Malvada joga xadrez com sua própria vítima. Aqui se trata de quando se aproxima como sombra para levar alguém que ama e você fica um tempo tentando negociar que Ela vá, desista, saia fora de mãos abanando. Uma vontade de mostrar uma placa “volte só quando for chamada”. Ou: “Não adianta bater, eu não deixo você entrar”.

Ela pensa, dá um tempo, você até chega a acreditar que desistiu e está dando uma chance. Mas, uma hora, Ela, traiçoeira, se volta e decide que não mais atenderá seu pedido. Positivamente, pelo menos, deixa a clara sensação de que estará aliviando o sofrimento daquele que você gostaria que não fosse embora.

Não é nem um pouco fácil, e sim muito doloroso, porque o filme inteiro passa em reprise e arranha a tela. Escrevo sobre isso, mas só porque acho que até poderei ajudar mais alguém que se encontre na mesma difícil situação em que me vi nos últimos mais de sessenta dias com o meu pai. Esta semana perdi a jogada, e a Morte deu a sua cartada.

É uma hora em que é difícil ser compreendido, mas mais ainda o é compreender suas próprias emoções. Olhar no espelho e aceitar quão egoístas podemos estar sendo quando acompanhamos alguém doente e queremos que ele continue com a gente.

Há poucas semanas escrevi o quanto a espera é difícil, associando-a a tantas coisas que todo o tempo aguardamos para o nosso país e em fatos do dia a dia. Percebia ali o quanto apenas o definitivo poderia cessar essa batalha. Que seria uma questão de tempo – quanto, como, o momento, a ação, reação é que eram as incógnitas.

– A espera não contém certezas – concluía. Mas o definitivo…

Esses dias não sairão da lembrança e sei disso até porque não é a primeira vez que me deparo com essa força no campo de batalha da vida. Teve amigo, teve minha mãe, e agora lá se foi meu índio véio. Cada um desses momentos trouxe uma condição, se deu em um momento ao longo dos últimos quase 30 anos, em alguma fase que se mostrou extraordinária.

Achei um paralelo entre essas situações. Em todas, fazer tudo o que podia ser feito, tentar aguentar firme, se dedicar com corpo e alma, e cercar de amor. Muitas vezes você se sentirá sozinho, deixará pedaços, outros serão arrancados, como quando nos enganchamos numa ponta de prego, ou damos uma topada bem na quina da mesa. Ficam cicatrizes.

Dessa conta vai sobrar paz depois do desfecho. A descoberta que quão maravilhosos podem ser amigos com os braços estendidos, prontos a socorrer a cada round, quando nos vemos nas cordas.

E a certeza de que tudo deve ser feito, reverenciado, amado, mas em vida. Porque aí você fica com a parte boa, a das lembranças e a do conforto. Seu travesseiro agradecerá.

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12032009510Marli Gonçalves, jornalista – Se alguém quiser adotar eu, meu irmão e a gatinha, inscreva-se.

São Paulo, verão de 2017

 

mao apontando direitaPS.: Só mais uma coisinha: não há ódio que possa aplaudir e escarnecer e se deleitar com a tristeza de alguém doente e seus familiares, desejando o mal e fazendo piada. Não há humanidade. Entenda que sangue ruim envenena a alma e você poderá um dia precisar da mesma transfusão. Você sabe bem do que estou falando.

3 comentários sobre “ARTIGO – Perdi. Por Marli Gonçalves

  1. José Silvério Vasconcelos Miranda 28 de janeiro de 2017 / 15:41

    Torci muito pelo seu pai e você. Não deu. Paciência. Sessenta dias de luta é ” brabo”. Já passei por isso com pai e mãe . Sinceros
    pêsames à você e seu irmão. A gatinha sempre pode se consolar com um gato malandro, mesmo sendo mimada. Vá em frente.

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  2. aguipar 28 de janeiro de 2017 / 19:02

    Sei o quanto é doloroso, mas você é uma filha valorosa e concordo que temos que fazer tudo enquanto a pessoa é viva. E você fez isso. Só o tempo para cuidar da dor, mas a saudade nos acompanhará até chegar a nossa vez! Um beijão.

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  3. károly f. halász 29 de janeiro de 2017 / 13:11

    Eu acho que todos nós passamos por esta fase, mas a dor maior, é quando realmente sentimos na pele. Quando é com os outros não sentimos a mesma dimensão da perda, pois não tivemos laços afetivos ligados à nós. A poesia de Medeiros e Albuquerque é uma que me consola e alivia um pouco:
    “Eu sei Senhor, que não mereço nada, mas ponho em tuas mãos humildemente meu coração que sofre, e resignada minh’alma aguarda confiante e crente. Quando eu chegar ao têrmo da jornada em que a morte emboscada espera a gente, tem pena de minha alma amargurada, vê que eu também sou filho, e sê clemente, perdoa-me meu Deus se sou culpado, se tanto crime fiz tanto pecado que hoje choro contrito, e dá Senhor, que no côro glorioso que te exalta, não se sinta a falta de minha voz, cantando o teu louvor.”

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