ARTIGO – Aqui, agora. Aqui e agora. Perigo. Por Marli Gonçalves

Aqui Agora, lembro bem, o telejornal dos Anos 90 que, diziam, espremia sangue na tevê. Com apelo popular mostrava barbaridades e requintes de crimes, sempre com doses de novelas radiofônicas. Pois bem: vivemos o Aqui Agora na pele todos os dias, e o noticiário geral hoje não nega. O medo e a violência ao nosso lado, e em um segundo sua vida pode não valer é nada. Precisamos falar sobre isso. Aqui, agora, já.

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Na última quinta-feira, fraquinha, ainda me recuperando do esgotamento de energia de um resfriado daqueles (sim, fiz o teste – negativo) peguei minha sacolinha e como costumeiramente rumei para a feira. Tudo bem normal. Já no final das compras, na barraca de flores, que já contei para vocês jamais deixo de ter em casa, escolhia entre gérberas e antúrios. Não foram mais de dez segundos. A pouco mais de um metro, aos berros de sai, sai, sai, um homem enorme e com a cara toda ensanguentada, arma na mão, monta na moto de um entregador que acabara de estacionar para uma entrega. Outro, também enorme, monta na garupa e saem, derrapando, quase caindo; se alguém estivesse à frente não teria tido tempo de pular. E tudo ali virou um perigoso rebuliço. Pertinho das sempre povoadas barraquinhas de pastel.

Uma manhã como qualquer outra, mas algo mais poderia ter dado errado. Soube depois que o ensanguentado tentara antes roubar alguém e, flagrado, tomara capacetadas na cabeça. Na fuga, e como disse, ele não agia sozinho, o comparsa na garupa, pegaram a moto e se foram, velozes. Não é o primeiro assalto ou roubo que presencio, mas sei bem quais poderiam ter sido as suas consequências e desta vez eu estava lá, dentro delas. Uma lágrima rolou, sem jeito. A vida seguiu. Graças.

Mas é como se todos estivéssemos sendo visados o tempo inteiro. Uma moto, duas motos, as cenas se repetem com as pessoas sendo perseguidas, e suas coisas recolhidas. Não tem mais hora, nem lugar, rico ou pobre, velho, mulher ou criança – parecem seguir ordens de um demônio qualquer, obrigados talvez a cumprir metas de coleta, como se estivessem em empresas, como os que aterrorizavam coletando impostos. Não são pobres trombadinhas, moleques, são gente grande, bem grande. Tão cedo não esquecerei o olhar de ódio do ensanguentado.

Nunca se ouviu tanto em todos os lados os verbos agredir, atacar, ferir, desferir, roubar, bater, surrar, matar. Por qualquer coisa, aliás, armas espalhadas como objetos de morte, se mata. O funcionário da empresa de energia. O maluco que fugia ele próprio da morte por sua organização criminosa que toma o ônibus e faz reféns no Rio e atira a esmo fazendo vítima alguém que apenas iria viajar. A briga no trânsito. O feminicídio. A bala perdida. A força policial descontrolada, e justamente por tudo isso somando pilhas de cadáveres em suas procuras.

Tem ainda outro tipo de arma não controlada. Os motoristas bêbados na direção de carros e caminhões desgovernados que podem até entrar no seu quarto, enquanto dorme. Todas as horas e lugares parecem errados para a gente. Até dentro de casa. Em um segundo, um átimo, a vida pode mudar ou acabar.

Que sociedade é essa que vivemos, que estamos criando? Violência urbana. E rural. Cidades grandes, e nas pequenas também. Não há caminho de fuga. Temos os “tradicionais” bandidos, ladrões e criminosos, e gente que de um segundo para outro vira assassino, como se aquilo estivesse guardado ali dentro de si, despertado por um estalo. A polícia declara que investiga, pede que se registrem as ocorrências, mas é comum chegar às delegacias, não ter atendimento ou você mesmo preencher o B.O.

E tudo fica, em geral, por isso mesmo. Me digam se pode haver investigações reais de todos os casos com os efetivos que temos, muitas vezes demonstrando total despreparo. Com o poder político contaminado, sem resolver o assunto, mais preocupado em criminalizar de vez do que pensar em legalizar algo que – cá entre nós – sentimos o cheiro verde queimando tranquilamente no ar. E não é esse o foco da violência, os rastafaris diriam.

Notícias populares. E impopulares. Aqui, agora.

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marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

ARTIGO – Ensaio sobre a imprecisão, por Marli Gonçalves

Aquela diferença do segundo, do raspão, do milímetro, do milionésimo, e a pouca atenção que damos à busca da perfeição. Eu disse busca, tentativa, que deve ser eterna porque também é imprecisa

Farei você rodar um pouco sua cabeça, chacoalhar, bater os cabelos, com a conversa de hoje. Pensando na imprecisão. Imprecisão que grassa, atravessa e ultrapassa tudo, fazendo com que a gente se descuide. E cada vez se dê menos valor ao ofício, seja qual for. Se pode tudo, se pode ser qualquer coisa, para que fazer direito? Na cultura do momento, do qualquer coisa tudo bem porque daqui a pouco vai aparecer outra coisa, e que a gente-vai-mesmo-esquecer está nos levando a erros horrorosos. Perigosos. Sempre haverá alguns (erros) inesquecíveis.

Desde sempre observo e penso sobre esse átimo, breve, instante, estalar, que decide tudo. Ou muito, para ser mais imprecisa. Essa semana uma garota chinesa andava pela calçada, tralalalá, e um buraco abriu sob seus pés, sugando-a. Como ela era magrinha, vi que ali foi a combinação de tempo e ocasião. Ela não estava pouco atrás, nem um passo à frente.

Um passo em falso, um tropeção, um esbarrão, um piscar de olhos e todas as definições de tempos mínimos e fugazes podem mudar uma vida, duas vidas. Várias vidas. O “esbarrão do amor”- conheci algumas histórias – pode até gerar essas vidas. Aquele olhar perdido, a pressa, um pequeno atraso. O raio que cai do céu. O cruzamento.

Agora, nem o que necessariamente deveria ser exato, preciso, instrumento, ferramenta, o é! Soube, foi notícia outro dia, que um GPS com aquela sua vozinha infernal de maquininha mandou um cara entrar e ele entrou – na contramão. Já era. Outro dia eu mesma achei que tinha visto o sinal fechado para atravessar a rua a pé. Mas olhei na direção errada e foi a primeira vez que não xinguei uma buzina precisa e forte que graças a Deus não falhou. Não dá para se distrair nas grandes cidades. Não dá para ser impreciso. É tenso o fato.

Na verdade qualquer escorregão a precisão está por perto pode ser terrível. Virtual: mandar um email, digamos, para a pessoa errada, com conteúdo certo, mas que exatamente ela não poderia conhecer nunquinha; não desligar o celular direito e ouvir certas conversas. São cliques. Instantâneos. Real: um zero a mais no cheque. Não tomar a pílula todos os dias do mês. Riscar o fósforo. Pensar que o degrau da escada estava ali. Falar demais, já que as palavras proferidas não voltam para dentro da boca e, no caso, ao se tocar do que falou, só rezando para a outra pessoa ser surda. Ou desatenta. Sossegue: achar desatenção anda fácil.

Tem que andar olhando para baixo, se há buraco. Para o lado, se não tem um ciclista passando e raspando. Para cima, para o vaso, o piano, ou outra coisa melhor não acertar a cabeça.

Imprecisão é foco. Ou melhor, falta de, já que é uma indefinição, o espaço para uma ambiguidade, uma inexatidão. Um erro. Falta de rigor. Um remédio que você não tome pode não fazer mal, mas um remédio que tome (ou dê) errado pode matar. Há profissões onde, pela lógica, se deve correr da imprecisão. Médicos. Engenheiros. Salva-vidas. Pilotos e paraquedistas. Fora as imprecisões que só serão descobertas tempos depois, e em momentos muito precisamente fatais.

Estou aqui pensando sobre esse assunto, mas não pense que não sofro e muito, justamente por imaginar um mundo leve, não tão rigoroso. E por ser eu mesma, como boa geminiana, meio que desigual em muitas coisas. Fazer maquiagem, por exemplo, uma das horas que a minha imprecisão bate mais forte. Sempre um olho fica diferente do outro; passar delineador, aquele risquinho preto, aventura radical. Sou ruim de coreografia, sou ruim de decorar textos, não me meto a besta com desenhos a mão livre. Imprecisões não são admitidas nestas coisas. Chego ao final do dia arrasada de cansada por viver sempre na tensão da atenção. Em várias coisas, pior: sofro por mim e pelos outros.

Jornalistas, por sua vez, andam muito imprecisos. Às vezes levam reputações para o lixo, por conta disso. Só que a língua, a linguagem, as palavras, em muitas horas necessitam e reclamam exatidão; e o contrário pode levar a duras penas. Carlos Drummond de Andrade já pensava nisso quando escreveu “A eterna imprecisão de linguagem”. Definitivo, sempre.

Veja um trechinho:

– É um amor.
– Perfeito? perfeito da china? perfeito do mato? perfeito azul? perfeito bravo? próprio? materno? Filial? incestuoso? livre? platônico? socrático? de vaqueiro? de carnaval? de cigano? de perdição? de hortelão? de negro? de deus? do próximo? sem olho? à patria? bruxo? que não ousa dizer seu nome?

O poema do mestre Drummond vai indo até que termina assim:

– Vá com Deus.

– Qual?

Entendeu?

São Paulo, precisamente aqui neste lugar impreciso, 2012 Marli Gonçalves é jornalistaMais dúvidas do que respostas. Escolheu chamar isso de ensaio justamente porque é um gênero literário de catalogação imprecisa. Essai, em francês, quer dizer ensaio, experiência, prova, tentativa.

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