ARTIGO – Aqui, agora. Aqui e agora. Perigo. Por Marli Gonçalves

Aqui Agora, lembro bem, o telejornal dos Anos 90 que, diziam, espremia sangue na tevê. Com apelo popular mostrava barbaridades e requintes de crimes, sempre com doses de novelas radiofônicas. Pois bem: vivemos o Aqui Agora na pele todos os dias, e o noticiário geral hoje não nega. O medo e a violência ao nosso lado, e em um segundo sua vida pode não valer é nada. Precisamos falar sobre isso. Aqui, agora, já.

MFC auf X: „dois caras numa moto https://t.co/6l9scdnX78“ / X

Na última quinta-feira, fraquinha, ainda me recuperando do esgotamento de energia de um resfriado daqueles (sim, fiz o teste – negativo) peguei minha sacolinha e como costumeiramente rumei para a feira. Tudo bem normal. Já no final das compras, na barraca de flores, que já contei para vocês jamais deixo de ter em casa, escolhia entre gérberas e antúrios. Não foram mais de dez segundos. A pouco mais de um metro, aos berros de sai, sai, sai, um homem enorme e com a cara toda ensanguentada, arma na mão, monta na moto de um entregador que acabara de estacionar para uma entrega. Outro, também enorme, monta na garupa e saem, derrapando, quase caindo; se alguém estivesse à frente não teria tido tempo de pular. E tudo ali virou um perigoso rebuliço. Pertinho das sempre povoadas barraquinhas de pastel.

Uma manhã como qualquer outra, mas algo mais poderia ter dado errado. Soube depois que o ensanguentado tentara antes roubar alguém e, flagrado, tomara capacetadas na cabeça. Na fuga, e como disse, ele não agia sozinho, o comparsa na garupa, pegaram a moto e se foram, velozes. Não é o primeiro assalto ou roubo que presencio, mas sei bem quais poderiam ter sido as suas consequências e desta vez eu estava lá, dentro delas. Uma lágrima rolou, sem jeito. A vida seguiu. Graças.

Mas é como se todos estivéssemos sendo visados o tempo inteiro. Uma moto, duas motos, as cenas se repetem com as pessoas sendo perseguidas, e suas coisas recolhidas. Não tem mais hora, nem lugar, rico ou pobre, velho, mulher ou criança – parecem seguir ordens de um demônio qualquer, obrigados talvez a cumprir metas de coleta, como se estivessem em empresas, como os que aterrorizavam coletando impostos. Não são pobres trombadinhas, moleques, são gente grande, bem grande. Tão cedo não esquecerei o olhar de ódio do ensanguentado.

Nunca se ouviu tanto em todos os lados os verbos agredir, atacar, ferir, desferir, roubar, bater, surrar, matar. Por qualquer coisa, aliás, armas espalhadas como objetos de morte, se mata. O funcionário da empresa de energia. O maluco que fugia ele próprio da morte por sua organização criminosa que toma o ônibus e faz reféns no Rio e atira a esmo fazendo vítima alguém que apenas iria viajar. A briga no trânsito. O feminicídio. A bala perdida. A força policial descontrolada, e justamente por tudo isso somando pilhas de cadáveres em suas procuras.

Tem ainda outro tipo de arma não controlada. Os motoristas bêbados na direção de carros e caminhões desgovernados que podem até entrar no seu quarto, enquanto dorme. Todas as horas e lugares parecem errados para a gente. Até dentro de casa. Em um segundo, um átimo, a vida pode mudar ou acabar.

Que sociedade é essa que vivemos, que estamos criando? Violência urbana. E rural. Cidades grandes, e nas pequenas também. Não há caminho de fuga. Temos os “tradicionais” bandidos, ladrões e criminosos, e gente que de um segundo para outro vira assassino, como se aquilo estivesse guardado ali dentro de si, despertado por um estalo. A polícia declara que investiga, pede que se registrem as ocorrências, mas é comum chegar às delegacias, não ter atendimento ou você mesmo preencher o B.O.

E tudo fica, em geral, por isso mesmo. Me digam se pode haver investigações reais de todos os casos com os efetivos que temos, muitas vezes demonstrando total despreparo. Com o poder político contaminado, sem resolver o assunto, mais preocupado em criminalizar de vez do que pensar em legalizar algo que – cá entre nós – sentimos o cheiro verde queimando tranquilamente no ar. E não é esse o foco da violência, os rastafaris diriam.

Notícias populares. E impopulares. Aqui, agora.

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marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

ARTIGO – Bubuias e cucuias. Por Marli Gonçalves

Vamos de bubuias e cucuias, assuntos aleatórios que descrevem bem muitas das situações que acompanhamos, ficamos e onde vamos parar. Palavras sonoras, claras, e de fácil entendimento. Principalmente para quem já ficou de bubuia e foi pra cucuia. Muitos, essa semana.

BUBUIA - CUCUIA

Há alguns dias foi o aniversário de meu pai, que, então, faria 104 anos. Mas ele resistiu só até os 98. Datas são sempre estranhas porque ou nos fazem festejar, ou lembrar de muitas coisas, muitas vezes sofrer dependendo do que marcam. Bateu uma saudade imensa do meu caboclinho amazonense, mas também veio, recorrente, acreditem, uma lembrança engraçada. E por motivos óbvios: as tempestades que abateram São Paulo, os carros boiando, e o Datena se esgoelando no Brasil Urgente, das tardes (tenho a impressão que ele fica feliz com esse assunto). Era um programa que papai não perdia, sentadinho na sua poltrona. E em dias de chuva ficava ali vendo, contando, os carros todos de “bubuia”, como ele se expressava, feliz de estar protegido.

Sempre fui encantada pela palavra bubuia, sonora, vibrante, boa de falar e de escrever. No Amazonas, estar de bubuia é estar à mercê das águas, entregue à própria sorte. Como tantos estiveram esses dias e como tantos estarão ano após ano com qualquer chuva mais forte na cidade total e cada vez mais impermeável. Por aqui tudo anda uma loucura. Onde havia um monte de casinhas, vilas, constroem prédios. Nas esquinas, prédios. Onde tinha mato e terra, prédios. Piscou, mais um prédio – parece epidemia, que apaga tudo por onde se instala. Tudo piorado ainda mais com a recém descoberta que muitas construtoras estão pouco se lixando e derramam, vejam só, sobras de cimento nas ruas, que se solidificam bem duras nos bueiros já sem ar de tanto lixo. Ainda tem canalização de córregos feitas ao léu, muros gigantescos represando a passagem – e não só da água, como das pessoas, na nóia da segurança ou mesmo da total falta de fiscalização ou corrupção de suas tentativas. Problemas crônicos que nos farão ainda ver não só muitos carros de bubuia, mas as mortes nas enxurradas.

Tudo indo pra cucuia, mas esta palavra você deve conhecer melhor, faz mais parte do vocabulário nacional e a gente está sempre indo para lá, para cucuia. Bem abrangente. Vivemos indo para a cucuia no que depende especialmente do Poder Público, esse que ainda tenta se explicar com notas evasivas depois que já fomos para esse lugar, a cucuia.

Nunca tinha pensado muito nisso até outro dia, quando um amigo, Alexandre, que hoje vive na Espanha, coach e músico, passava uns dias aqui em casa, e acompanhando o desespero das chuvas fortes me viu falando de tudo que estava de bubuia. Ele ficou fascinado pela palavra, e saiu musicando, balbuciando bubuia, bubuia… Fui fazer uma pesquisa que nunca tinha feito e descobri que há o fascinante verbo bubuiar, com todas as suas possíveis conjugações e tempos.

Contei para ele que logo – imagino – vai aparecer com uma composição nova que até já tentava ao violão, juntando as notas musicais às palavras e conjugações de bubuia, falando de tudo que vai para a cucuia. Não vão faltar argumentos e rimas, não só pelos acontecimentos do mundo, como do Brasil, onde está de passagem tentando entender como pudemos chegar nessas situações tão estranhas, que nos afundam mesmo quando estamos bem longe das águas das chuvas.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon).

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ARTIGO – O que foi feito do coitado do plural? Por Marli Gonçalves

Se letras matassem fome, se pudessem ser transformadas em alimentos, e fossem recolhidos todos os “S” esquecidos por aí com a maior normalidade, uma parte desse problema tão grave estaria exterminado. Mas, infelizmente, aponta apenas para o que fazemos da língua portuguesa nesse país que tanto despreza a Educação.

 S - plural

Não lembro de outro momento onde tenham sido feitas tantas entrevistas com a população, com gente comum, do povo. Seja nas ruas, na frente dos postos de saúde, hospitais lotados, ouvindo apelos ou denúncias; seja por intermédio da internet, pelas telas dos celulares ou computadores de quem está isolado em casa, ou em algum lugar distante. Seja, ainda, pelo envio às tevês de vídeos, incentivados por campanhas ou apelos de apresentadores para que as pessoas expressem suas opiniões ou reclamações.

No jargão jornalístico chamamos (ou chamávamos, porque tantas coisas têm mudado e perdido o sentido ultimamente, que já nem sei mais) de “Povo fala”.

Sempre foi uma forma importante de consulta, e sempre mostrou um retrato fiel de nossa população. E cada vez mais mostra também o quanto a linguagem tem sofrido. Os plurais, entre os mais afetados, coitados, esquecidos pelos cantos. E nem estou falando só de linguagem quase institucionalizada, regional, “um chopps, dois pastel”, que virou ironia para paulistas. Mas atenta à uma certa preguiça de pensar que leva ao constante desvio da norma culta. “Nós vai, nós vem” e tudo bem.

O outro coitado, o dinheiro nacional já tão desvalorizado, o real. Não há Cristo que o multiplique desse jeito, com o popular hábito de deixá-lo sempre no singular. “Dois real”, gritado tanto em centros de comércio, como expresso nas respostas dos balconistas: “custa só 100 real”.

O extermínio do plural também tem sido muito acompanhado pela não conjugação dos verbos. Há conjugações completamente esquecidas, em suas flexões, tornando-os com suas juntas duras, e frases sem alongamento. Algumas dessas formas, quando usadas, causam até espanto, perplexidade. As mesóclises, por exemplo – a colocação do pronome no meio do verbo – do ex-presidente Michel Temer, foram para a história da política. Jânio Quadros também foi outro muito chegado a essas formas. Mas ainda tem a próclise e a ênclise… Nossa língua é mesmo cheia de bordados.

Em compensação, uma praga, talvez porque reclamamos muito do elitismo de uns, da rudeza e simplicidade de outros, como o Lula, ou dos desvarios das frases de Dilma, suportamos agora, de Bolsonaro, as falas mais tortas e palavras mal digeridas proferidas diariamente, que atacam inclusive a democracia. Só pode ser praga. Nenhuma de suas orações servem ao progresso.

O futuro do pretérito do indicativo, o pretérito mais-que-perfeito, o infinitivo pessoal, o pretérito imperfeito, o Infinitivo impessoal composto, de mãos dadas com o gerúndio composto, se jogam deprimidos por aí, continuamente ameaçados e horrorizados inclusive com a forma como um dos seus familiares – o gerúndio – se aclimata tão bem no país que tudo posterga. Nada mais é realizado, mas estará sendo; ninguém mais liga, “vai estar ligando”, e por aí vai a valsa, rodopiando, rodopiando.

Nosso povo é plural, decerto. Esperamos que cada vez mais isso fique claro e seja respeitado. Mas aprendemos muito sobre formas corretas lendo – e nossos livros agora estão sob ameaça de taxação que ainda os fará mais caros do que já são. Aprendemos também com o que ouvimos, e nas tevês – basta prestar atenção – até a publicidade, antes tão bem cuidada, comete assassinatos, seja em plurais, conjugações, ou em vícios de linguagem, estes vilões que poderiam ter uma Cracolândia só para eles: barbarismos, arcaísmos, neologismos, solecismos, ambiguidades, cacófatos, ecos, pleonasmos, estrangeirismos, estes ultimamente beirando o insuportável.

É um tal de “sair para fora”, “entrar para dentro”, “nunca ganha”, “boca dela”, que doem nos ouvidos. Só não mais, “tipo”, do que a estranha língua falada pelos participantes do BBB e as letras dos inacreditáveis funks que assolam a música nacional.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Pode me escutar um minuto? Por Marli Gonçalves

conversaTem de pedir por favor? Pagar? Comprar uma ficha? Você diz uma coisa e respondem outra. Ninguém mais dá mais atenção um ao outro? Reparou? Virou uma competição de egos, de desgraças, coisa para novos estudos sobre intercomunicação e a nova Torre de Babelconversa 2

Melhor falar com o espelho, com a parede, com o teto, pensar em voz alta para achar que tem alguém ouvindo, mesmo que esse alguém seja você. Pelo menos não ficará frustrado com a forma que as relações tomaram ultimamente, nesses tempos de internet, que não há por que negar influenciam e vêm mudando de modo impressionante a nossa forma de interagir. Talvez seja por isso que tanta gente conversa longamente com seus bichos de estimação, esses nos dão atenção, pelo menos podemos achar isso – e todo mundo precisa de atenção por mais de um minuto.

Pega o exemplo de um post no Facebook. Ando apavorada com isso, com o jeito que cada pessoa tem de entender algo e que se desvia de tal forma com o comentário que faz do que você escreveu que é preciso até voltar, reler, verificar o que foi que você próprio escreveu, se não está maluco, se não foi mudado por algum hacker ou pelo próprio teclado cheio de vontades.

Tudo superficial. Não adianta “desenhar” também, nem falar lentamente, nem usar palavras fáceis, mais didáticas, arroladas com toda a calma que Deus lhe concedeu. A impaciência se une à prepotência e aí a coisa degringola de vez.

Leandro Karnal, o historiador meio filósofo, outro dia em um programa de tevê tocou nesse assunto. Chamou a atenção para a absoluta falta de continuidade das conversas, o que eu já vinha notando há algum tempo. Nunca a expressão palavras ao vento soou tão verdadeira. Você diz que está morrendo e a pessoa fala que está frio, ou que também está morrendo, você precisa ver como ela anda se sentindo mal, precisa ir ao médico e não tem tempo, mas é assim mesmo, e aí desfia um rosário particular – ai se não prestar atenção. E à esta altura você, lá, morto, caído, estirado, pronto para ser enterrado.

animated_conversationPara Karnal há, inclusive, uma nova linguagem surgindo. Fiquei horrorizada porque ele ainda admitiu que ela não levará muito mais em conta, por exemplo, o uso de plurais. Os “s” todos mordidos, comidos, em extinção. Os verbos andam massacrados, e às vezes as notícias têm de ser lidas mais de uma vez para serem entendidas tal a confusão da narração. Há dias, acreditem, apareceu uma mulher com cabelos azuis numa matéria e que até agora não ficou clara sua participação na história.

Como ultimamente se fala feio; como se escreve feio! Frases capengas com vocabulários pobres e alterados como as rosas de Hiroshima.

Como se pensa feio. Há uma crise na intercomunicação que deve ser levada em conta para entendermos o momento atual de um país onde idiotas viram heróis e qualquer coisa é celebridade por dez minutos ou dez dias, esquecidos mais rapidamente ainda.

Imagino os professores nas salas de aula falando para dependentes de smartphones loucos para teclar com quem está fora dali, mandar uma selfie, curtir, compartilhar. Nunca se foi tão social e ao mesmo tempo antissocial.

Dentro desse quadro psicótico se desenvolve a nossa política, ouvimos aqueles discursos delirantes e coligações inimagináveis, que vêm produzindo um dia a dia insuportável e cada dia mais cansativo para quem ainda esperançoso aguarda mudanças.

Essa semana vai ser difícil, com a patética escolha da nova presidência da Câmara, já com mais de dez candidatos, uma baciada de sujeitos e sujeitas que não representam nem apresentam nada de bom. Fomos aos milhões às ruas, mas como cada um falava uma coisa, parece que acabamos todos não sendo ouvidos e assim condenados a ficar trocando seis por meia dúzia por mais algum bom tempo.

cnversa 3

Marli Gonçalves, jornalista – Me escuta aqui um minuto.

São Paulo, 2016

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