ARTIGO – Caos urbano. Por Marli Gonçalves

O caos se forma quando o dito progresso não é acompanhado nem de longe por um mínimo planejamento. Está cada vez mais difícil levar uma vida minimamente saudável, não sei se todas as outras metrópoles também estão assim, insuportáveis, intragáveis. Falta tudo: ordem, ar, civilidade, e agora até a luz toda hora se apaga em algumas das principais regiões da cidade, sem eira nem beira. Por horas, e dias. Sem explicações. Relatos selvagens de nosso dia a dia.

caos
cartum Henfil

Não tem dia, não tem noite, não tem hora, o trânsito engarrafado, as pessoas alucinadas, as motos cortando as vias em alta velocidade. Ao mesmo tempo é difícil sair e não ver algum motoboy estatelado no chão. Regras não valem para nada e todos os dias as notícias aqui e ali de ataques de fúria, muitos até bastante razoáveis, diria até que demoraram. A espera por ônibus por mais de duas horas em pontos e terminais desconjuntados. O Metrô que para no caminho, os trens, isso quando as linhas funcionam – o caos na hora do pico. Passageiros andando pelos trilhos. Tudo isso é cotidiano.

Este ano as eleições serão municipais – ou seja, para prefeitos e vereadores, os mais próximos de nós, os que deveriam estar atentos justamente a tudo e não apenas para aumentar impostos, dar nomes de ruas, inventar normas mequetrefes, tentar legislar  – sim, alguns fazem isso – sobre questões particulares, religiosas. Por aqui o atual prefeito aparece sempre só bem depois dos fatos, consternado, tadinho, com os olhos cheios de água e sem qualquer solução para os prejuízos milionários. A gente é que tem vontade privatizar a cara deles.

Um silencioso desmonte dos equipamentos culturais existentes. A gente grita e não é ouvido. O governador do maior Estado do país aproveita e vai dar uma volta lá fora para posar sorrindo ao lado do primeiro-ministro de Israel, em plena famigerada guerra que insistem como mais um ponto para nos dividir nessa insanidade política.

Muito mais do que apenas fora da ordem, a vida nas grandes cidades está beirando o insuportável. Faz calor – alguém acha que ar condicionado legal é o que gela até a alma. Um exemplo do que está me valendo mais de uma semana de forte abatimento depois de uma viagem intermunicipal dentro de um ônibus que calculo estava a uns 15 º C.

Nos hospitais públicos e privados assistimos à superlotação com a explosão de casos de dengue, covid e de todos os males. Sem lugar muitas vezes nem para sentar para a espera de longas horas. Poucos profissionais, visivelmente sobrecarregados e mal treinados.

O momento é de total demolição do passado e construção de prédios em todos os cantos, sem cuidado com a infraestrutura. Caminhões pesados destroem o asfalto das ruas que viram buraqueiras.

Impraticável.  Tudo.  Não faltam exemplos. Até quando?

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marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Retrospectivas e retroescavadeiras. Por Marli Gonçalves

Final de ano e elas, as famosas retrospectivas, já começam a pipocar, tenebrosas, tenebrosinhas, especialmente se lembrarmos o que passamos nos últimos quatro anos, somando o desgoverno, a pandemia, seus efeitos, as dúvidas que permanecem sobre o que vem aí, como vai ser

Hindsight Bias: Why You Make Terrible Life Choices - Nir Eyal

O sininho que toca é a música com os artistas saracoteando nos intervalos da programação. “Hoje é um novo dia” …Nas ruas, desta vez meio confuso até na 25 de Março e dividindo espaço com a Copa, o Natal tenta se infiltrar, misturando em pinceladas o seu vermelho com o verde e amarelo igual teve de ser nas eleições. Já não são mais muitas as luzinhas chinesas piscando nas janelas e que enfeitavam a cidade, as varandas e jardins, trocadas por bandeiras. Aqui perto de casa, a rua chique está enfeitada com uns parcos anjos com rabinhos em forma de sereia, até singelos perto das decorações que já vi. Uns carregam pacotes; outros, corações. Parecem tímidos, meio apagados. Econômicos, como sói ser nesses tempos bicudos.

Até o Papai Noel dos shoppings agora é mais magro, contido, rendido ao mundo digital e politicamente correto, sem crianças no colo. Rodolfo, Corredora, Dançarina, Empinadora, Raposa, Cometa, Cupido, Trovão e Relâmpago, as graciosas renas, andam postas de lado, talvez até para não criarem mais polêmicas, a marca desses tempos, em que tudo é muito discutido, embolado, cancelado. Chato.

Não demora, ela vem, não tem jeito: ao lado do especial do Rei, a chamada para a retrospectiva jornalística, desconjuro! Mais perdas, mortes, acidentes e acontecimentos funestos a serem recordados em takes bem escolhidos, o que nos faz tentar ficar bem longe porque a memória recente é viva. Mas as quimeras todas, essas, as pessoais, as nossas retrospectivas particulares, começam a se apresentar. Nos cobramos por tudo, começamos a prometer fazer tudo diferente no ano que vai entrar, tentando planejar as coisas como se isso fosse possível.

Com elas, o medo, a lista de sonhos abandonados, e também chega o otimismo e crença que daqui pra a frente tudo vai ser diferente, “você vai aprender a ser gente, seu orgulho não vale nada, nada!” …

Ok, sei que retrospectiva é só do ano que se despede, mas no caso nacional ele soma os últimos, suas consequências, as quais infelizmente ainda sentiremos queimando na pele nos próximos tempos. Como vai ser?

E as retroescavadeiras? – você pode estar se perguntando. Apenas um registro. Aqui em São Paulo elas estão vorazes e barulhentas em todos os locais, bairros, esquinas. Derrubam o passado sem dó, com poucas tacadas, dando lugar a stands de venda tão luxuosos que a gente acha até que são eles os próprios imóveis que estarão no lugar. Impressionante. Não dá para ficar uma semana sem passar em um local – quando volta, a sua memória, sua retrospectiva, o que viveu ou viu ali, simplesmente sumiu, do dia para a noite, não precisou nem passar o ano. Meu medo é essa surdina. Essa transformação acelerada, sem eira nem beira.

Mas vamos que vamos. O show não pode parar. “…Bom é ser feliz e mais nada…”

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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