ARTIGO – O país de uma nota só. Por Marli Gonçalves

Chaaata! Uma nota só, e que não é de samba bom, vira mania para qualquer assunto e é uma nota perturbadora, porque seja qual for o assunto parece sempre se obrigar a dividir em apenas dois tons de opinião, como se muitos outros tons não houvessem, ou não precisassem ser considerados para o melhor entendimento e posicionamento em qualquer questão. Fora que outros assuntos importantes acabam negligenciados.

A tecla fica até gasta. O debate, cada vez mais pobre. Gente atarracada numa posição, grudada mesmo, moucos a qualquer contra argumentação. Moucos, mas estridentes, porque não param sequer um instante de repisar, enviar “gracinhas”, ataques, informações falsas, memes de mau gosto e etceteras esculhambando quem ouse mudar o ritmo e tentar trazer algum fato ou argumentação que navegue entre o sim e o não. Recordei muito de uma antiga propaganda, creio que de tintas, se a memória não falha: O que seria do vermelho se todos gostassem do azul?

O indefensável. Não poderia haver exemplo maior do que alguns fatos desses dias, como a desastrada declaração de Lula, que juntou a palavra Holocausto e sua triste memória ao horror da guerra que se desenvolve mortal e cruel no Oriente Médio em pleno 2024, criando uma polêmica que a última coisa que conseguiu foi buscar a paz ou solução, desviando a atenção, piorando as coisas, e sendo utilizada para aumentar o barulho e ainda mais a divisão. Ou, também, como a inócua discussão ainda tentando absolver o abominável e fracassado – além de cheio de provas – plano de golpe perpetrado pelo grupo que, travestido de verde e amarelo, tenta reescrever a palavra patriota, sempre com a tinta do ódio e da divisão que assistimos nos últimos anos. E, pior, muito pior, agora envolvendo o delicado aspecto da religião. Tudo isso para aumentar o grau de fervura que querem levar para as ruas.

Assim, fica difícil expressar a falta de cuidado das declarações do atual presidente, para quem o considera intocável. Virou guerra também. Criticar muitas das medidas tomadas monocraticamente pelo Xandão, o xerife. Enumerar a lista telefônica de barbaridades cometidas durante o Governo Bolsonaro, às quais se soma agora a execrável caminhada pró-golpe que ainda tentam defender, mas que quem viveu o negro período da ditadura militar ainda mostra no corpo e mente as suas cicatrizes.

Outro dia precisei pedir, com muito cuidado, mãozinhas juntas, a um velho jornalista e amigo descambado que, por favor,  não mais me enviasse vídeozinhos ridículos – a gota d´água foi um sobre dois otários segurando uma faixa pedindo o impeachment de Lula em cima de um viaduto – ou mensagens quilométricas de como os militares consertariam o país. A resposta foi que, como jornalista, eu seria obrigada a ver, como se nas quase 18 horas diárias de trabalho nas quais passo na ativa diante do mundo já não fosse obrigada não só a ver, ignorar ou mesmo responder a coisas até piores que parecem mostrar o país indo para um brejo do qual demoraremos a tirar o pé. Chegam por todos os lados: e-mails, redes, imagens. E até no noticiário oficial, diário. Atrapalha o serviço de uma forma indescritível.

O país de uma nota só está de tal forma cansativo que, ao mesmo tempo, tenho conhecido muitas pessoas que fogem de tudo isso, como se diz, como o diabo foge da cruz, e se alienam em seus sins ou nãos, sem qualquer vontade ou capacidade de rever a posição, que acaba cristalizada, como assistimos.

Pior é a dificuldade que tudo isso traz exatamente quando queremos mudar de assunto, uma vez que tantos estão na lista de espera. Quase impossível. A verdade é cada vez mais alcançamos menos, falamos mais para nossos próprios bandos na refeição feita com uma só panela. Na mistura, o tempero vem sendo complexo: misoginia, preconceitos de todo o tipo, individualismo, verborragia, e, por fim, a liberação de aspectos que jamais imaginávamos encontrar em muitos dos que nos cercam.

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marli goMARLI GONÇALVES Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Vai-Vai. Quem vai? Quem não vai? Por Marli Gonçalves

Vaivai, vai, vainão vou… Mais uma coisa bem chata para acompanhar esses próximos dias, como se ainda faltasse programação, além de tictacs, toctocs e a captura de dois fugitivos lá no Rio Grande do Norte: a listinha de confirmações, os convidados para o palco da festinha dominical temporã e sem noção programada para causar tumulto na Avenida Paulista daqui a alguns dias. Quem vai ter coragem de mostrar a carinha?

vai vai, quem vai

Não que ainda seja necessário, haja dúvidas, porque a cada dia estão mais claras e comprovadas quais foram as intenções, os participantes e simpatizantes da tentativa de golpe e perpetuação no poder do grupo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O que causou as balbúrdias e o vilipêndio dos símbolos nacionais, os mesmos que novamente querem que sejam usados como uniforme de identificação. Será a tentativa de defesa do indefensável. Mais uma aposta na divisão do país que há mais de um ano tenta se reencontrar em paz novamente. Mas está difícil.

Repito que estamos em busca do tempo perdido, sem a poesia de Proust. As ervas daninhas continuaram a crescer, e ao que parece cada vez de forma mais desordenada de todos os lados.  Redes sociais agitadas, robôs em ação espalhando fake news e discursos para confundir aqueles que não sabem de todas as coisas da política.

Qual desfile veremos na avenida? Que outras cores? Do outro lado, torcidas organizadas de vários times garantem presença no mesmo dia e hora, em defesa da democracia atacada. Coisa boa daí não sai.

Enquanto isso o homem que virou xerife, há de ser dito, dá ordens também estranhas, ultrapassando os limites jurídicos do poder que vem concentrando em suas mãos e criando, assim, mais uma divisão. Distribui sentenças de mais de década a uns coitados usados pelos poderosos como linha de frente da destruição de 8 de janeiro, enquanto os mandantes e influenciadores continuam por aí atrás, inclusive, de angariar mais incautos que se rebelem por eles. Tudo fica mantido: o que posa de coitado para se manter em destaque. O que se destaca para continuar impune. Os que aparecem como salvadores perdendo as oportunidades com o tempo correndo, quando tudo poderia já estar caminhando melhor, incluindo aqui as falas e atos do atual presidente.

Vai-Vai é nome de escola de samba, inclusive a que este ano trouxe uma ala infernal que irritou a polícia ao retratá-la violenta no que é quando empunha escudos. E a questão diariamente até lá será: quem vai, quem não vai? Como se comportará a plateia de mais esse show de horror?

Mais dias ainda de o Brasil acompanhar a captura dos dois fugitivos da prisão de segurança máxima em Mossoró, RN. Não podia acontecer, mas aconteceu. Parece que esqueceram que preso – em qualquer lugar que seja –  só pensa em fugir, maquinando ou aproveitando qualquer chance ou oportunidade, e no caso parece que algumas ajudaram – inclusive a inépcia da segurança cheia de buracos do local, apenas agora identificada, embora realmente seja mesmo estranho segurança máxima sem muros, só com telas. Se capturados, ouviremos desculpas e requintadas explicações.

Temos um arrastado ano eleitoral pela frente, onde qualquer detalhe será usado para se jogar no tabuleiro.

Pior é não faltarem detalhes, porque de sobra há tempo perdido em todos os setores. Enfrentamos uma epidemia de dengue, sem vacina para todos; vacina, entre outras, contra Covid, ainda demonizada pela ignorância que não se satisfez com as milhares de mortes, o que contribui para que a doença ainda esteja aterrorizando a todos.

O país do Carnaval busca enredos cada dia mais difíceis de serem compreendidos, e o samba com certeza vai desafinar. Lembro bem – e a tempo – de um trecho de “O Canto de Ossanha”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes:

“… O homem que diz dou (não dá)/ Porque quem dá mesmo (não diz)/  O homem que diz vou (não vai)/ Porque quando foi Já não quis/ O homem que diz sou (não é)/ Porque quem é mesmo é (não sou)/ O homem que diz ‘tô (não ‘tá)/ Porque ninguém ‘tá” Quando quer/ Coitado do homem que cai/  No canto de Ossanha traidor…

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marliMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br