ARTIGO – Colar de protocolos. Por Marli Gonçalves

Para o que mesmo servem os protocolos, aqueles números quilométricos que nos dão toda vez que – e, claro, quando – conseguimos reclamar dos serviços às concessionárias? Essa é apenas uma das perguntas do que enfrentamos nas emergências. A verdade é que estamos completamente despreparados para os eventos climáticos intensos e cada vez mais constantes que já batem à nossa porta.

colar de protocolos

Um torcicolinho básico, em breve mais uma doença urbana, de tanto que olhamos para o céu, para a formação das nuvens, e não é para ver se elas desenham anjos ou ursinhos, mas para observar se e quanto vai demorar o mundo cair sobre nossas cabeças e se nossos pés mergulharão em enchentes.  Se corremos o risco de os carros virarem botes navegando descompassados nos rios das ruas. Medo de passar perto de árvores descuidadas pelo poder público sempre prestes a ruírem, ambos, árvores e poder público. Medo de se ver obrigado a paralisar tudo quando falta a energia elétrica, cliques, variações e estrondos que ainda podem acabar com o pouco que temos guardado na geladeira e fundir, disse fundir, outros equipamentos em seus descompassados vaivéns. A nóia de ficar sem comunicação com celulares mortinhos, descarregados.

A descrição acima é a de muitos moradores; em São Paulo, esta semana foi geral. O mais louco é tentar entrar em contato com a tal Enel, a que, digamos, dá a luz. Pergunta rápida: você aí sabe seu Código de Cliente, o número de sua Instalação? Pois bem, vai precisar disso assim que conseguir achar o canal para entrar em contato com essa companhia, o que também não é nada fácil. Desista pelo Whatsapp, para não perder mais tempo e carga do celular, meu conselho. Tudo isso no escuro, e com esse mundo todo digital nem aquele papel da fatura com esses dados existe mais por perto (agora já tenho anotado no caderninho SOS que providenciei).

Supondo que conseguiu contato, pronto! Ganhou um quilométrico número para anotar sabe-se lá onde, dada a situação; mas nenhuma previsão correta de quando a luz voltará. Todas, “chutadas”. Dificilmente vai conseguir falar com gente de carne e osso e voz.

protocolos de denúncias
Bandeja pregada na árvore – Denúncia e protocolos dormindo em alguma gaveta

O exemplo foi sobre energia elétrica, mas pode expandir para qualquer serviço, ou mesmo denúncia que tente fazer. Esses dias mesmo ao encontrar perto de casa um plano de assassinato de árvore, fotografei e busquei registrar onde pude o fato: um bar prendeu com ganchos uma bandeja na árvore em frente ao estabelecimento. Vamos lá: registrei no Portal 156 da Prefeitura. Ganhei um protocolo. Registrei também na Polícia Ambiental (do Governo do Estado). Ganhei outro protocolo. Tudo com imagens, nada anônimo. Resultado? A bandeja continua lá detonando a árvore já fragilizada. Não recebi qualquer resposta, e isso já faz mais de dez dias. Até que esses protocolos têm “só” oito números. Os das companhias telefônicas costumam ter quase vinte. Anote. Pergunto novamente: para que servem? Para fazer um colar? Jogar na loteria?

Está passando da hora de todos os serviços se adequarem realmente, e não será pondo robôs para nos atenderem e nos enlouquecerem com suas opções numéricas, nunca as que precisamos. Isso não é modernidade; é enrolação.

Cada vez mais é visível o despreparo e desatenção diante do que já sentimos das alterações climáticas previstas e ficando mais graves. Promessas esquecidas de obras, a desfaçatada cara compungida de prefeitos e autoridades lamentando desgraçadas mortes e tragédias.

Olhe para cima. Olhe para os lados. Veja se as nuvens estão plus size, para qual lado o vento se organiza. Atualize um aplicativo de clima por satélites já que os coitados dos meninos e meninas do tempo ficam perdidinhos e nem se ruborizam mais quando erram nas previsões que ocupam os noticiários, e uma vez que tudo muda rápido, bem rápido.

Anotou o protocolo? Este é o de seguir. Ah, não esquece do caderninho SOS!

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Pode vir quente, que estou fervendo. Por Marli Gonçalves

Todo assunto anda quente, literalmente quente, alguns mais do que outros, até com labaredas que queimam tudo por onde passam deixando um rastro de destruição e áreas que muitos de nós nem estaremos mais por aqui para nos certificar se houve tempo de dar um jeito. Se do nada, das cinzas, surgirá algo bom e renovado. Vocês sabem que a verdade é que até a fênix renascendo das cinzas é lenda, embora seja mesmo uma bela história.

vagalume

Juro. No meio desse fogaréu da onda de calor, da janela de meu apartamento, vi um vagalume noite passada. Esfreguei o olho, estiquei o que pude minha própria visão, pus óculos de longe, fiquei alguns minutos reparando se não estava vendo coisas. Não. Vi um vagalume. Um só. Ele volitava em torno de uma arvorezinha chinfrim, tadinha, onde vivem pondo lixo aos seus pés, e que eu já cansei de me indispor com o restaurante em frente por causa disso.

Árvore não é lixeira. Árvore não é lixeira! Será que agora depois desses últimos dias nos quais as árvores se rebelaram chacoalhadas pelos ventos fortes, caíram, às centenas, matando, levando fios, postes, derrubando muros, prendendo gente em casa, deixando milhões sem luz, e até sem água, alguém vai se tocar do quanto elas sofrem numa cidade como São Paulo? Temo que não, embora até esteja vendo reportagens na tevê enaltecendo a importância delas. Continuo minha campanha solitária repetindo Árvore não é lixeira.

O povo não percebe que o lixo – que enfiam nelas bem enfiadinho, mesmo que haja um outro lugar, como um poste, ao lado – mina a base, de muitas já atacadas pelos famigerados cupins, que ódio tenho deles.  O cachorrinho faz cocô, o tutor até cata com uma pazinha e cara de nojo, põe num saquinho de plástico (repara que sempre são bem coloridos), dá um nó e paf! Joga lá no pé da árvore, às vezes fica quase um arco-íris. Também tem quem as encha de pregos e cartazes, abrindo feridas. Isso quando as coitadas não têm ainda mais o azar de ter como vizinhos gente que acha que suas folhas sujam o chão, que atrapalha alguma manobra da garagem ou até mesmo a fachada do bar. Cansei de saber de malucos jogando óleo quente ao pé delas até conseguir que morram, assassinos. Não foi por menos que se rebelaram esses dias, como que combinando uma vingança. Sobrou para a concessionária de energia elétrica, a tal Enel. Sobrou para a cara de pau do prefeito que só pensa naquilo, a eleição do ano que vem.

(Parênteses: é tão descoordenada a ação da Prefeitura por aqui que no mesmo dia, temperatura de quase 38 graus à sombra, no qual uma criança de dois anos foi esquecida dentro da perua de transporte escolar de uma creche municipal e morreu, sem ser notada por ninguém, nem pela creche onde não chegou, uma tristeza enlouquecedora, na propaganda de noite o prefeito falava que “sempre há vagas nas creches da cidade, preparando o futuro de nossas crianças”). Pois é.

Mas vou voltar a falar do meu vagalume. Amo vagalumes e já há anos não via nenhum porque não tenho viajado, continuo aqui na urbanidade total onde só rolam baratas em série escapando dos bueiros. Aranhas! Não sei você, mas nos últimos tempos elas têm sido bem presentes e em todos os locais da casa, aquelas pequeninas pero perigosas, pretinhas (sim, são pretinhas) e as horrorosas, marrons. Não andam, pulam. Pulam e somem, não deixam para trás nem as teias. Fora isso, as abelhas sumindo e outro dia li uma matéria observando que nem os insetos antes comuns se esborracham mais nos para-brisas, nas estradas, como acontecia.

Estamos em completo desequilíbrio da natureza. Não é de hoje. Mas agora o povo tá acordando e dando nome para o perigo com o qual decididamente não sabemos e nem temos qualquer condição de lidar, despreparados todos para as consequências cada vez mais cruéis. São as pomposas mudanças climáticas, do qual estamos ouvindo falar com frequência, como se coisa nova fosse. Até o Ministério do Meio Ambiente ganhou mais letras na porta: agora é do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil. Aliás, não tenho visto muito a Marina Silva nesse meio tempo de horror, estranho. Não era ela quem devia estar cuidando desse preparo para o futuro sem que sejamos fritos pelo calor, ou afogados pelas enchentes, ou levados pelos ventos?

Nada está normal. Calor sempre tivemos, tudo bem, somos um patropi. Mas está insuportável aqui na selva de pedra, mais abafado, congestionado, irritante. Para descrevê-lo, se não o sente, vou ter de usar uma vivência que mulher nenhuma deseja nem para seu pior inimigo ou inimiga: a menopausa. Está sentindo muito calor? Incontrolável? Tá afogueado, suando de pingar, com os nervos à flor da pele? Pois bem: saiba que é assim que as mulheres se sentem durante um bom tempo quando entram na menopausa. É horrível. Assim mesmo. Não há ar condicionado que dê conta, muito menos os desregulados que gelam ossos, choque térmico total.

É ou não é para achar que foi algum sinal dos céus, uma luz, o que vi? Vi um vagalume. Vi sim.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

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