Artigo -Chove lá fora, e aqui. Por Marli Gonçalves

Chove lá fora, e chove de um tudo, muito além da água que inunda um Estado inteiro. Nossos olhos chovem incontroláveis vendo as cenas da tragédia no Sul. Mas chove também preconceito, tirania, violência, mentiras e incompreensão.

 

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Uma chuva para a qual não adianta abrir guarda-chuvas, porque não existe nenhum tão grande e forte que nos resguarde de tantos acontecimentos que, pasmos, assistimos nos últimos tempos molhados e escaldados pós-pandemia, aquela que acreditamos severamente que mudaria o mundo para melhor. Piorou. E parece que muito.

Guerras se multiplicam e permanecem, e os que as promovem mantêm seus ouvidos moucos a qualquer apelo de cessar fogo, acordos, tentativas de mediação de nações e organismos internacionais cada vez mais fracos. Vencem os senhores da guerra, os donos das armas.

Não são os alquimistas que estão voltando. São os moralistas e hipócritas haja visto a impressionante avalanche deles que, por exemplo, sucedeu o show de Madonna, inundando, sim, todas as redes sociais, e com comentários inacreditáveis em pleno 2024. Pior, os chatos foram quem botaram galochas para fazê-los, alguns muitos anônimos; outros, infelizmente, entre nossos próprios grupos e amigos, o que foi mais terrível constatar, apareceram mostrando a verdadeira cara. Há muito não lia tanta hipocrisia, moralismo barato, desconhecimento, maldade, absurdos e bobagens como nessa semana, ultrapassando qualquer limite. Nunca tinham visto, talvez, um espetáculo livre de amarras, curtido um rock, ido a um teatro, lido um texto forte de tantos autores que temos, e não é de hoje, odeiam a arte. Ah, também não fazem sexo; Oh! – mas o que é isto? Não têm prazer, nem admitem que exista, que há quem goste, que a diversidade abriu as portas, escancarou as janelas.

Até parece. Santos do pau muito oco. São os mesmos que alimentam a audiência absurda de sites e perfis pornô, e nem se fala mais no escurinho do cinema. Ficaram mais incomodados ainda porque o espetáculo passou também na tevê, além daquele um milhão e meio de pessoas registrado nas areias de Copacabana, e que tudo correu em paz, ao contrário do que eles previam e até apostavam contra. Aliás, eles também assistiram, alguns até pessoalmente, como a turma da extrema direita captada mexendo os pezinhos com a música e que depois correram para se explicar para seu grupo maldito. Um deles ousou dizer que foi ao show de Madonna porque ela é “amiga de Israel”.

Chove ignorância. Chove preconceito, e no caso também mais uma mostra do etarismo que condena as mulheres – Madonna, 65 anos, quase 66! Nem viram nada quando ela chegar aos 80 rebolando mais que Mick Jagger quase com 81, ambos leoninos da gema.

Chove, acima de tudo, negacionistas, uma enchente. Negacionistas, não só de mudanças climáticas, embora já claramente as estejamos vivendo. Negam tudo que não seja para eles. Gostariam que o mundo regredisse ao estágio que sonham ainda poderiam controlar, e que nos tiraria os direitos tão duramente conquistados. Se aproveitam inclusive da liberdade, que conquistamos, pela qual tantos morreram, para espalhar sem limites as mentiras, o ódio e a tirania, as malditas divisões que promovem.

Essa chuva de horror tem de parar, para evitar novas tragédias que nos enlameiem ainda mais enquanto sociedade civilizada.

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marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

ARTIGO – Não tô bege e Madonna para dar e vender. Por Marli Gonçalves

Tudo bege, tudo nude, tudo nada. Tudo neutro. Mais uma vez uma onda para todo mundo parecer nada, e o “nada” tentando parecer como chique. Uma irritante tendência de neutralidade quando o que mais precisamos é de cores, significados, criatividade, personalidade, opinião, protestos, fazer alguma diferença.

bege

No meio de tantas tragédias, como a das destruidoras enchentes que assistimos no Sul do país e as outras tantas de nosso cotidiano nacional, imaginem o quão difícil é escrever sobre outros temas mais, digamos, diferentes. Mas de longe, individualmente – a não ser expressar total solidariedade e preocupação – pouco se pode fazer a não ser lamentar como tragédias anunciadas vão e vem, também em ondas, e pouco se age sobre elas, para evitá-las, no meio tempo. As grandes mudanças climáticas berram na porta do planeta.

É preciso agir, opinião. Mas o mundo, do meu ponto de vista, está tentando ficar bege, seguindo a moda que invade as vitrines e ruas e que transformará, se sucesso tiver, todo mundo em robôs amorfos, sem cor, sem luz, neutros, quase transparentes, sem graça. Tudo vendido como moderno, natural, sofisticado, sereno, como se esse momento do século fosse tudo isso. Pudesse ser assim. Bom se o nude fossem corpos nus, realmente livres.

Tô bege. A expressão, usada para exprimir surpresa ou ficar admirado por algo, sempre me pareceu estranha. Melhor seria outra cor. Um rubor, mais para o vermelho. Imposta pela indústria como “o novo branco”, ou “novo preto”, o bege é o novo nada, em suas variações de nada. Nesses dias de absoluta apoteose pela apresentação de Madonna nas areias de Copacabana, de bege por lá – espera-se – o mais próximo vai ser a areia. Lembrando que o dourado não é bege, claro, porque brilhos ali não faltarão, e o pop de sua rainha é todo bem colorido em figurinos, shows e luzes. Em propostas.

O Brasil, de um lado penalizado pela destruição especialmente no Rio Grande do Sul, de outro está mesmo alucinado com a apresentação espetacular de Madonna no Rio de Janeiro, praticamente dividindo o noticiário em todos os setores, além do musical, o econômico, social, turístico. Madonna para dar e vender, grátis para a população que acredita mesmo nisso, patrocinada por apoio de governo (e pinceladas eleitorais) e por um grande banco, e bem aproveitada para seus grandes negócios, inclusive no Hotel Copacabana Palace onde a trupe está hospedada, com estrangeiros fechando ali seus gordos negócios.

O bom é que nosso criativo povo também está fazendo a festa, e essa é bem colorida, com o turismo, ganhando algum com a venda de todo o tipo de objetos, com destaque para o uso das cores do arco-íris, nas bandeiras, nos “flaps” dos enormes leques, e mostrando a nossa verdadeira face e diversidade racial e de gênero em apresentações performáticas de todas as idades, afinal a musa comemora aqui o final de sua turnê de 40 anos de uma carreira gloriosa onde sempre esteve adiante do tempo e dos principais temas polêmicos dos quais nunca se esquivou. Ao contrário, os apresentou e garantiu inclusive que ela, hoje aos 65 anos, seja também um ícone contra o etarismo árduo e especialmente enfrentado por todas as mulheres. Nascida em 1958, assim como eu, sobrevivendo como camaleoa, e como diz a propaganda, ainda, pelos próximos 100 anos.

Saracoteando na cabeça dos beges. Dos neutros.

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marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

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ARTIGO – Colar de protocolos. Por Marli Gonçalves

Para o que mesmo servem os protocolos, aqueles números quilométricos que nos dão toda vez que – e, claro, quando – conseguimos reclamar dos serviços às concessionárias? Essa é apenas uma das perguntas do que enfrentamos nas emergências. A verdade é que estamos completamente despreparados para os eventos climáticos intensos e cada vez mais constantes que já batem à nossa porta.

colar de protocolos

Um torcicolinho básico, em breve mais uma doença urbana, de tanto que olhamos para o céu, para a formação das nuvens, e não é para ver se elas desenham anjos ou ursinhos, mas para observar se e quanto vai demorar o mundo cair sobre nossas cabeças e se nossos pés mergulharão em enchentes.  Se corremos o risco de os carros virarem botes navegando descompassados nos rios das ruas. Medo de passar perto de árvores descuidadas pelo poder público sempre prestes a ruírem, ambos, árvores e poder público. Medo de se ver obrigado a paralisar tudo quando falta a energia elétrica, cliques, variações e estrondos que ainda podem acabar com o pouco que temos guardado na geladeira e fundir, disse fundir, outros equipamentos em seus descompassados vaivéns. A nóia de ficar sem comunicação com celulares mortinhos, descarregados.

A descrição acima é a de muitos moradores; em São Paulo, esta semana foi geral. O mais louco é tentar entrar em contato com a tal Enel, a que, digamos, dá a luz. Pergunta rápida: você aí sabe seu Código de Cliente, o número de sua Instalação? Pois bem, vai precisar disso assim que conseguir achar o canal para entrar em contato com essa companhia, o que também não é nada fácil. Desista pelo Whatsapp, para não perder mais tempo e carga do celular, meu conselho. Tudo isso no escuro, e com esse mundo todo digital nem aquele papel da fatura com esses dados existe mais por perto (agora já tenho anotado no caderninho SOS que providenciei).

Supondo que conseguiu contato, pronto! Ganhou um quilométrico número para anotar sabe-se lá onde, dada a situação; mas nenhuma previsão correta de quando a luz voltará. Todas, “chutadas”. Dificilmente vai conseguir falar com gente de carne e osso e voz.

protocolos de denúncias
Bandeja pregada na árvore – Denúncia e protocolos dormindo em alguma gaveta

O exemplo foi sobre energia elétrica, mas pode expandir para qualquer serviço, ou mesmo denúncia que tente fazer. Esses dias mesmo ao encontrar perto de casa um plano de assassinato de árvore, fotografei e busquei registrar onde pude o fato: um bar prendeu com ganchos uma bandeja na árvore em frente ao estabelecimento. Vamos lá: registrei no Portal 156 da Prefeitura. Ganhei um protocolo. Registrei também na Polícia Ambiental (do Governo do Estado). Ganhei outro protocolo. Tudo com imagens, nada anônimo. Resultado? A bandeja continua lá detonando a árvore já fragilizada. Não recebi qualquer resposta, e isso já faz mais de dez dias. Até que esses protocolos têm “só” oito números. Os das companhias telefônicas costumam ter quase vinte. Anote. Pergunto novamente: para que servem? Para fazer um colar? Jogar na loteria?

Está passando da hora de todos os serviços se adequarem realmente, e não será pondo robôs para nos atenderem e nos enlouquecerem com suas opções numéricas, nunca as que precisamos. Isso não é modernidade; é enrolação.

Cada vez mais é visível o despreparo e desatenção diante do que já sentimos das alterações climáticas previstas e ficando mais graves. Promessas esquecidas de obras, a desfaçatada cara compungida de prefeitos e autoridades lamentando desgraçadas mortes e tragédias.

Olhe para cima. Olhe para os lados. Veja se as nuvens estão plus size, para qual lado o vento se organiza. Atualize um aplicativo de clima por satélites já que os coitados dos meninos e meninas do tempo ficam perdidinhos e nem se ruborizam mais quando erram nas previsões que ocupam os noticiários, e uma vez que tudo muda rápido, bem rápido.

Anotou o protocolo? Este é o de seguir. Ah, não esquece do caderninho SOS!

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

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ARTIGO – Molequinhos e molequinhas. Por Marli Gonçalves

Os tempos mudam o sentido até das nossas próprias lembranças divertidas quando, molequinhos e molequinhas, fazíamos – claro – molecagens, traquinagens, algumas inocentes e até outras nem tanto, admitamos, só que sempre ainda com aquele espírito infantil. Eram coisas de criança, perdoáveis, às vezes valendo um castigo, uma sova, um sabão. Ou uma suspensão na caderneta que precisava ser mostrada aos pais e voltar, assinada.

MOLEQUINHOS E MOLEQUINHAS

Meu irmão outro dia me chamou a atenção de que anda percebendo que tem muita gente aí pela rua fazendo pequenas molecagens, gente grande, ou maiorzinha. Às vezes em grupos de dois, três; outras, mesmo sozinhos. Tipo apontar o céu como se ali estivesse acontecendo algo, e fazendo todo mundo olhar para cima. Ou passar e apontar para o seu pé, sem parar, seguindo adiante como se nada tivesse ocorrido. Coisinhas bobas, que até arrancam um sorriso daqueles bons em dias que estávamos submersos e afogados na realidade dura. Ele próprio – vejam só – inventou uma graça, soltando de repente para alguém desconhecido na calçada um sonoro “oi, amigo!” e um aceno, quando passamos de carro. Muitos olham, sorriem, alguns dão tchauzinho. Outros, nem te ligo, continuam com a cabeça enfiada no celular, esse novo mundo particular que suga e entorta os pescoços.

Tentei rever algumas molecagens do tempo de escola, todas bobas que fazíamos até por alguma diferença com amiguinhos, e até com professores. O chiclete ou uma tachinha grudados na cadeira. Esconder alguma coisa. Não lembrei de muitas porque sempre fui boazinha, estudiosa, mas via outros aprontos, repito, se comparados, bem bobos, perto do que hoje denominamos bullying, capaz de gerar tantas tragédias. Hoje, na cultura do ódio que se espalhou pelo globo, no anonimato da internet e vias digitais, a coisa se escancarou, levando a suicídios, vinganças, planos de ataque e emboscadas. Não há mais graça, e é como se os jovens reproduzissem o pior do mundo adulto: misoginia, racismo, humilhações por diferenças de classes sociais, não entendimento de pessoas com necessidades especiais. O tempos realmente mudaram.

Tem se revelado que não é outro o motivo dos tenebrosos massacres nas escolas, jovens que voltam onde estudaram para revidar o sofrimento que ali lhes foi causado, mesmo que nem todos tenham se apercebido disso. Monstros criados pela própria sociedade, alimentados pelo descaso com que são tratadas as dores que sentimos enquanto crescemos, algumas que necessitavam de maiores cuidados. Todo mundo conheceu alguma peste na escola, sabe que crianças podem ser muito más. É de se notar que esses casos horríveis envolvem sempre meninos – não lembro de um desses ataques ter sido feito por alguma menina. O mais comum é que se atraquem tentando arrancar os cabelos umas das outras. Embora o noticiário traga sempre alguns casos terríveis de pequenas jovens assassinas, dando fim em outra, em geral por ciúmes.

Claro que, infelizmente como vimos esses dias, o ataque também possa vir de um adulto problemático e perturbado, em algum lugar que simbolize o que odeia, mas a análise quase sempre revela um problema de infância ou adolescência não resolvido, guardado. Uma maldade cultivada durante anos, agora adubada nas profundezas de grupos malignos que brotam e atravessam portas e janelas dos quartos onde solitariamente dialogam com o obscuro, incentivando entre si o estrelato de seus autores. Invadem as redes, as telas, formam grupos intolerantes. Aí as molecagens ganham outro sentido, desprezíveis, canalhices perigosas e perturbadoras.

Como eles sabem muito melhor do que nós operar esse mundo virtual, sem escrúpulos o fazem, agora aprendendo até a disseminar incontroláveis fake news, como muitas foram efetivadas essa semana, logo após o ataque mortal à creche em Blumenau. As redes nacionais foram invadidas por ameaças citando ataques que seriam realizados em escolas que citam nomes, endereços e até datas.

Precisamos muito falar sobre isso com nossos molequinhos e molequinhas, saber o que acontece nas escolas, atenção às formas de socialização nas escolas, impor esse assunto no tema geral Educação, com treinamento para os profissionais detectarem os primeiros sinais. Não basta botão de pânico, quando ele já está em curso. Não é mais brincadeira, traquinagem, nem infantil, nem inocente, nem boba, quando envolve incentivo de fora, de adultos, ou de quem quer só botar fogo na palha, provocar sadicamente a eclosão do inferno.

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MARLI CG ABRILMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon).

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ARTIGO – Começar de novo e de novo e de novo. Por Marli Gonçalves

A gente, de alguma forma, até faz isso todo dia, parecemos adaptados. Mas não é nada perto daqueles que realmente precisam começar tudo de novo, e o tudo é tudo mesmo, como vemos com tantos atingidos por enchentes, por desgraças, pela lama, pela injustiça

COMEÇAR DE NOVO

Não são as nossas manhãs, espreguiçadas. Até porque muitas vezes nem dormiram, não tiveram sequer onde se encostar. Temos visto, ouvido e conhecido situações devastadoras de quem perdeu tudo, e que se repetem cada vez piores seja por condições climáticas, desgoverno e descasos, tragédias anunciadas e esquecidas logo depois.

Isso é que é resiliência, em sua mais dura e clara acepção. Não apenas a forma até descuidada e de modinha de que tantos ouvimos falar em resiliência no final do ano passado, tornando-a uma “palavra do ano”, entre outras, e da qual saiu vitoriosa “vacina”.

O sentido maior de se recobrar ou se adaptar à má sorte ou às mudanças vem no sorriso – que não sei de onde tiram forças – do entrevistado que mostra forças e fé para reconstruir sua vida, sua casa, suas coisas. Começar de novo foi o que mais ouvi e me chamou a atenção esta semana de tantas enchentes, chuvas, desabamentos, rompimentos de barragens, vidas e histórias sendo levadas pelas águas com a mesma força de furacões. Tudo vai ao chão. Ou é encoberto.

Começar de novo. Os olhos brilham buscando em algo abstrato, nos céus, no olhar para cima, a força do recomeço, mesmo que ainda não vejam o Sol ou o céu azul. Mulheres com seus filhos nos braços festejam a vida e anunciam que irão atrás de tudo o que perderam – essa força inexplicável da fé tão bem guardada em lugar que sempre sobrevive a qualquer mau tempo. Estar vivo é o que importa. Poder recomeçar. A chance.

Essa mesma fé move a solidariedade dos que transitam em meio à destruição levando pequenos tijolos para esse início, seja a comida para dar força, as roupas doadas, os brinquedos que possam distrair as crianças abrigadas sob algum telhado que ainda tenha restado, os colchões que delimitarão seus espaços por uns tempos.

Ali começa a reconstrução. A partir desse pouco é que muitos vão começar de novo, e muitos deles já em idade avançada, alguns até acostumados porque esse raio, sim, já caiu outras vezes no mesmo local, no mesmíssimo local onde já construíam seus castelos com seus mínimos, uma geladeira, um fogão, talvez um armário, um berço, uma cama, uma tevê, uma mesa, um quadrinho na parede, algum porta retrato, um tapetinho. Um bichinho de estimação, que pode ter sido salvo, e que se não o foi, será esse grande motivo de choro dessas pessoas fortaleza tão especiais encontradas nos cantinhos de nosso país. Nas cidades e povoados, alguns com nomes até bem poéticos, originais, mas dos quais nunca tínhamos ouvido falar até que fossem arremessados em outros destinos.

Acompanhar tragédias, ouvir os depoimentos dos atingidos, documentar suas vidas para o noticiário é, talvez, uma das missões mais difíceis para qualquer jornalista, muitas vezes ele próprio ali com seus dramas pessoais. Os repórteres de rua, esses ainda tão pouco reverenciados, sem glamour, sem tempo para muitas elucubrações, que também têm de sair vivos e a tempo dessas situações, sempre recomeçando, buscando errar pouco, e até tentar demonstrar pouco se emocionar, porque alguém falou que temos de ser imparciais.

Isso os marcará por toda a vida, posso garantir, porque sou marcada pelas que noticiei, pelos lugares que conheci, pelas pessoas que entrevistei em situações que jamais esqueci. Com elas aprendi lições de força e sobrevivência. Conheci a força dessa fé, seja em Deus, Jesus, Cristo, Oxalá. Pude ver suas histórias nas marcas de seus rostos, e entender o significado de vida e morte, tão comuns, tão próximos.

Entender o que é exatamente tocar a vida.

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Marli - perfil cgMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Avidez por alguma alegria. Por Marli Gonçalves

Uma, uminha, umazinha só. Qualquer porção de alegria, esse produto tão raro nos dias de hoje. Imploramos. A gente tenta, mas não passa um dia sem que alguma notícia esquisita nos abale, por mais otimistas que tentemos ser. Muito impressionantes esses tempos que passamos, agravados pela pandemia que a muitos abala, deprime, e a outros enlouquece

ALEGRIA

Daqui assistimos o mundo inteiro tentando se curar, se recuperar, reviver, renascer e se reinventar e reorganizar desse baque, pesadelo, que vivemos já quase há um ano e meio e onde cada dia de sobrevivência precisa ser efetivamente comemorado. Chegam de fora boas notícias, da abertura, do povo voltando às ruas, incentivado, reconstruindo.

Mas, aqui, quem consegue? Em um dia perdemos parentes e amigos; em outro, quem tanto admirávamos, por quem torcíamos pela recuperação, mesmo que ela fosse até difícil de acreditar se pensássemos bem.  Paulo Gustavo se notabilizou por nos trazer esse raro e cada vez mais escasso produto, a alegria. Chega ser sintomática, emblemática, simbólica, a sua partida no meio disso tudo.

Como conter a emoção? O prefeito da maior cidade do país lutando publicamente pela vida em um leito de hospital, com altos e baixos.

De repente ainda mais tragédias nos abalam como se tivessem ocorrido do nosso lado, e a gente chora, sofre e perde o sono pensando em professoras e bebês assassinados a golpes de adaga na outrora pacata cidadezinha de nome poético, Saudades.

A gente fica revoltado ao ver uma desastrosa operação policial carioca no morro do Jacarezinho, morro que já deu samba mas que agora mostra as suas ruas, vielas, casas e barracos cobertos de sangue que escorre o desespero e o luto de 25 mortes, muitos ainda sequer identificados. Pior: ver, ouvir, saber que tem quem aplauda uma chacina como essa, sem pé nem cabeça já na sua origem. Uma espécie de pena de morte, aceita sem julgamentos, como quem degola, arrasta e espalha pedaços de corpos.

Brasil atual embaçado, o país do esculacho, temo, vá demorar mais do que outros para se recuperar desse tempo amargo e retomar sua tradição de país gentil, do povo generoso, gente alegre reunida, Cidade Maravilhosa, etc. e tal. Não temos vacinas suficientes, e os motivos disso surgem porque estamos com um desgoverno absurdo e cruel, administrados por um presidente bronco, cercado de bronquinhos, e que ainda se diverte ironizando o sofrimento do povo, fazendo da política uma barafunda gincana, onde nós somos caçados, e não surge força capaz de cassá-lo, porque há muitos beneficiados com suas confusões, animados por uma trupe violenta e insistente que sai às ruas espumando por medidas antidemocráticas, alimentados  por informações descabidas que repisam. Que se comprazem em apenas atacar e odiar – a bílis que lhes dá algum sentido na vida triste.

Quando tudo começou, ano passado, estávamos mais unidos. As varandas e janelas abertas emitiam cantorias, os vizinhos começaram a se conhecer e se cumprimentar, mesmo que com acenos, com gestos solidários, inclusive para os mais velhos. A solidariedade se mostrava na preocupação com o outro, fosse com recursos, com comida, companhia, compaixão. Chegamos a acreditar que do tal novo normal surgiria um povo melhor. Que nada poderia demorar tanto. Havia ainda um certo otimismo.

Mas 2021 chegou arrasando e agora já estamos em maio, chorando todos os dias a evitável escalada de mortes correndo para alcançar a marca oficial tão temida, de meio milhão de vidas perdidas. A alegria se esvaiu.

Continuamos, contudo, com todos os erros sendo continuamente repetidos, o negacionismo se espalha contaminando o solo como uma praga para a qual a Ciência não conseguirá solução em laboratórios. Precisávamos ter tratamento precoce, sim, mas para evitar toda essa tristeza. Que pudesse evitar, antes de mais nada, tanto oportunismo e toda a miséria que se apresenta em todas as áreas e que prejudica agressivamente o futuro, esses nossos muitos dias pela frente.

Necessitaremos de alegria, alguma, muita, e que esta seja coletiva. Precisaremos nos unir o mais rapidamente possível para procurar essa fonte para beber, e que agora está soterrada.

Ao menos um pouco de alegria vem da certeza que parece que enfim já começamos a escavar para encontrar essa fonte e que logo jogaremos fora todo o lixo que a encobre.ALEGRIA

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marliMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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