ARTIGO – Medos terrenos e desassossegos voadores. Por Marli Gonçalves

Está fácil não, viver. Simplesmente viver. Os medos se multiplicam, por mais que a gente deles fuja, e até tente controlá-los. Como é que se fica tranquilo, por exemplo, com essa história da dengue, dos malditos insetos que não vemos nem para lhes dar vassouradas? Ou melhor, vemos toda hora seus bebês malditos se multiplicando nas águas paradas mostradas em todos os lugares? Mas tem mais, muito mais, do que dengue.

Medos

Calor agoniante, chego à janela para uma refrescada, um ventinho, fumar um cigarrinho. Logo capto a aproximação de um mosquitinho voador volitante.  Pavor. Pra mim ele é preto e branco, com listinhas, e o afugento com uma baforada certeira. Ufa. Esse eu vi, nem sei quem era, se era o tal Aedes aegypti, o mais famoso do momento. Vou dizer: odeio insetos em geral. Podem me enumerar teses científicas da importância deles para qualquer coisa, até pra evitar uma Terceira Guerra, que não vai adiantar. Para mim esses sujeitos podem acabar com a humanidade, pior que putins, trumps, e até uma guerra nuclear – dizem que muitos deles sobreviveriam. Odeio. Moscas, mosquitos, formigas, aranhas, traças, cupins, baratas e suas variações.  Poucos escapam à minha sanha, como joaninhas e vagalumes. Mariposas, então, chegam a me causar angústia. A gente fica “psíquico”, como gente simples define.

Já parou para pensar o momento que estamos vivendo, além do real já pavoroso, esse mundo quase invisível para o qual pouco adianta se armar, praticar tiro ou fazer curso de apertar o spray da lata de inseticida? Ficar procurando e destruindo qualquer lugarzinho de água parada em seus domínios, sabendo que ali perto pode ter muito mais em terrenos baldios, piscinas largadas. Qualquer lugar. Podem estar lá, as tais larvas rebolantes crescendo para virar bichos, que podem te picar, deixar bem doente, matar? Qualquer lugar, qualquer um, tampinha, buraquinho. Não tem vacina garantida para todos. Não adianta por máscaras contra eles. Nem beber repelente, já que passar na pele, ficar empastado o dia inteiro, acredite, parece improvável a real eficiência, possibilidade, e já tem é muita gente enriquecendo vendendo essa indicação de defesa.  Se as pessoas não conseguem nem comprar filtro solar!

Surgiu agora uma nova nóia e de nome mais apavorante chegando perto, vinda lá do Amazonas, a tal febre Oropouche, mais uma arbovirose — doença, como a dengue e zika, transmitida por insetos, mosquitos, aranhas, carrapatos. Essa pode vir de infernais bichinhos ainda muito mais comuns, maruims ou mosquitos-pólvora e os pernilongos, esses todos que em todos os cantos zunem nos nossos ouvidos, picam nossas pernas, coçam. Se picarem alguém infectado, pumba, passam a ser transmissores.

O filme de terror da atualidade, agravada com as mudanças climáticas, El Niños, Niñas e outras previsões malignas só aumenta. Que tal a infestação de mortais escorpiões amarelos que vêm sendo encontrados até no interior de ônibus urbanos, além de você poder, dependendo de onde vive, calçar sapatos que são suas moradas? Todo mundo criando galinhas, os novos cães de guarda de quintais.

Já ficou psíquico também? Pois, então, se conseguir ultrapassar os insetos preciso enumerar mais uns bons motivos para cada dia estar mais complicada a nossa situação, além do que comemos, se ultraprocessados, envenenados, cancerígenos; além de  enchentes, raios faiscantes ou choques em fios nos postes de ruas que também podem se abrir em rombos quando por elas passamos; roubos e assaltos à luz do dia, golpes com amor e sem qualquer amor; balas perdidas.

As balas encontradas. Granadas. Fuzis, metralhadoras, muita pólvora. Não! Não estou falando do crime organizado não, nem de comandos coloridos. Tudo isso pode estar na casa do seu vizinho, como aconteceu em Campinas com a explosão do apartamento no prédio onde morava todo bonitinho um coronel, general, sei lá, militar verde e amarelo de merda com sua aposentaria de quase 30 mil reais. BOOM! E vocês me perguntam? Esse “cidadão” foi preso imediatamente? NÃO! Ficou ali conversando com os policiais que atenderam a ocorrência, com dezenas de feridos, e saiu andando. Talvez assobiando. Apareceu depois, de coitadinho que teria tentado suicídio (com um canivete que não é besta de se matar mesmo) e até agora não sabemos o que será feito dele. Quantos iguais a ele estarão por perto, os tais colecionadores, CACs, caçadores e cacas permitidas que espalham armamentos e sorriem?

Eu ia escrever sobre nós, mulheres, que o Dia da Mulher, 8 de Março, vem aí, cada vez mais vilipendiado e comercial. Claro que também aí escreveria sobre medos e sobressaltos de nós, que somos mais da metade da população do país. Todos os dias cruelmente assassinadas – essa semana um monstro não só matou a esposa como arrancou seu coração. Como se não bastasse a violência geral, os estupros, temos ainda de enfrentar a ignorante perda ou discussão de alguns poucos direitos nossos tão duramente conquistados nas últimas décadas.

E guerrear contra os malditos mosquitinhos.

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marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Macacos não me mordam. Por Marli Gonçalves

Mizaru-Kikazaru-Iwazaru-1Feliz Ano Novo. Corre! Minha proposta, positiva, otimista: vamos tentar começar de novo, nem que seja usando o ano novo dos outros, porque esses nossos primeiros dias não foram bolinho, não refrescaram os nossos calores, muito menos mostraram a luz do fim do túnel. Vamos abrir outro ano; vamos agora de Ano Novo Chinês, 8 de fevereiro, Lua Nova, entrando no Ano do Macaco, o 4714. Será – mais precisamente – o Ano do Macaco de Fogo que, dizem, ajuda quem planta o bem. Vai até 27 de janeiro do ano que vemmacacão

Nesse período vai dar tempo de a gente pular uns galhos. Poderia ser Macaco de Metal, Água ou Madeira, mas agora é o de Fogo, tudo de acordo com o ano. O Macaco de Fogo cobra com juros o que foi injusto, falso e destruidor de vidas e sonhos, descobri, buscando mais sobre esses mitos. E como de juros a gente entende, penso que o tal macaquinho pode bem vir a ser um bom amuleto para a gente se apegar esse ano, pedindo para melhorar um pouco a situação e inclusive comprando até algumas bugigangas com a cara dele vindas justamente lá da China. Prepare-se que os macacos vão inundar o mercado de todo o planeta a partir dessa semana.

Daí a minha proposta de que façamos outro Ano Novo, só não dá para gastar muito nem comprar roupas novas que estão pela hora da morte. Vamos entrando, ver no que dá.

Dizem ainda que, se achamos que 2015 foi cheio de surpresas, desafios, mudanças e agitação, melhor se preparar para viver em 2016 o dobro disso tudo. O Macaco é um dos 12 animais símbolos do zodíaco chinês, onde cada um representa um ano. De acordo com a lenda, Buda chamou todos os animais a si antes de se mandar da face da Terra. Somente doze animais teriam vindo despedir-se. Como recompensa ele nomeou um ano para cada um pela ordem em que chegaram. Veio primeiro o rato, depois o boi, o tigre, coelho, dragão, serpente, cavalo, carneiro, macaco, galo, cão e porco. Bonito, né?

macaquinhoBonito, mas essas coisas são sempre muito intrigantes. O macaco é um animal especial, inteligente e muito próximo, creio que eles também pensem assim quando nos veem. Em comum, tivemos lá atrás – há mais de seis milhões de anos – um mesmo antepassado, em solo africano. Uma linhagem virou o que somos. Outra, o que eles são, evoluindo por lá mesmo. Nós não descendemos dos macacos, como ainda tem quem ache. Não os substituímos, eles estão aí. Somos apenas bem parecidos.

Cada macaco no seu galho, nos diriam, baixinho, para não despertar uns chatos politicamente corretos, sociólogos de gabinete que associam essa tão conhecida expressão com uma “clara tentativa de intimidação social, de manutenção do status quo”. Prefiro, ao contrário, entender como “não se meta no meu território”, “cuide de sua vida que eu cuido da minha”. Não invada meu espaço. Tenho pensado muito sobre isso vendo tanta gente fazendo “jornalismo”, “comunicação”, sem ter noção dessa responsabilidade.

Mas repara que o macaco já está na ordem do dia. Uma boa parcela da população, pasma com tudo que vem sendo revelado nos últimos meses, com tudo que tem ido abaixo no país nos últimos meses, tem pensado seriamente em mandar um certo grupo político, um certo partido e seus líderes de barro, fazer o quê? Justamente: pentear macacos! Uma expressão comum e bem engraçada, se a gente ficar pensando que não deve ser nada fácil pegar o bichinho para pentear. Manda alguém ir fazer isso é não estar querendo vê-lo por perto por um bom tempo. Exatamente o que faremos quando nos livrarmos desses micos, e que estão nos fazendo pagar outros, alguns até bem esquisitos, diante do mundo.

Os macacos estão dando as cartas, como nos jogos dos baralhos tradicionais, em que alguém os tirava, aquele mico de circo. Têm a ver até com o nosso mais novo motivo para pânico, o vírus zika. O vírus foi isolado, encontrado pela primeira vez em 1947 em um macaco na floresta de Zika, que lhe dá o nome, em Uganda, África. De lá, veio se espalhando e chegou aos humanos como uma trágica vingança daqueles descendentes que não viraram humanos na evolução das espécies. Voa com o Aedes aegypti, o mosquito invocado, que tem um leque de doenças em sua mochila de viagem.

Então, Feliz Ano novo. Aproveitando as deixas budistas, lembro ainda de outros três macaquinhos, os chamados sábios, os que tapam os olhos, os ouvidos e a boca numa boa proposta resumida no provérbio “não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal”.

Só que aqui, no momento atual, precisaremos fazer ao contrário: temos de ver bem o que está acontecendo, ouvir com atenção e abrir a boca para protestar, inquietos, fazendo uma algazarra bem grande para nos livrarmos de todos desses perigos.

São Paulo, 2016macaquito

Marli Gonçalves, jornalista Cachorro, no horóscopo chinês. Mas fica com a macaca quando tomam nossa banana de cada dia.

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Sensacional, sensacional. Artigo de Cora Ronai hoje, em O GLOBO. Sobre o aborto

FEMINISTAS SIM, PRECISAMOS FALAR SOBRE ISSO.

Sobre o aborto

Por CORA RONAI

A epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra “aborto” basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exc

gravida anda

eções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.

Interromper uma gravidez — em qualquer situação — é prerrogativa da mulher. A maioria dos países do Primeiro Mundo, aqueles que melhor resolveram as suas desigualdades econômicas e sociais, já reconheceram isso. O aborto é legal, sem restrições, em toda a América do Norte, na Europa (com as significativas exceções da Polônia e da Irlanda), na Austrália e numa boa parte da Ásia, para não falar em países que nem são tão desenvolvidos assim, mas que têm feito um esforço nesse sentido, como nosso vizinho Uruguai ou a África do Sul. Em outros, como Índia, Japão ou Islândia, foram estabelecidos limites de tempo para a interrupção da gravidez, mas mesmo esses limites podem ser flexibilizados em casos de doença grave da mãe ou do feto, ou circunstâncias socioeconômicas adversas. Eles entendem que a maternidade é um compromisso para a vida inteira, e que um aborto é muito menos traumático, individual e coletivamente, do que uma criança indesejada.

O Brasil, porém, está alinhado com o Afeganistão, a Somália, a Líbia, o Sudão, o Mali, o Burundi, o Iêmen ou o Haiti, países onde a vida humana, caracteristicamente, vale muito pouco. Até Paquistão e Arábia Saudita, que tratam as suas mulheres feito lixo, têm leis melhores do que as nossas, para não falar numa quantidade de países da África subsaariana, como Zâmbia, Namíbia ou Quênia.gravidinha

Um excelente mapa interativo do Center for Reproductive Rights mostra a legislação sobre o aborto no mundo. Ele pode ser visto em goo.gl/340WF.

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Digo que o Brasil precisa discutir o aborto, mas eu mesma, pessoalmente, não tenho mais ânimo para isso. Sei que existem pessoas boas genuinamente angustiadas com a sorte dos fetos alheios, para além de dogmas religiosos e falsos moralismos, mas essas pessoas têm sido minoria nas discussões acaloradas da internet.

Nessas discussões, as pessoas que mais se dizem horrorizadas com as mortes de fetos — chamando-os de “crianças” para maior efeito dramático, fingindo desconhecer o fato de que “crianças”, ao contrário de embriões, conseguem sobreviver fora do corpo da mãe — são estranhamente insensíveis às mortes das mulheres obrigadas a abortar em condições sub-humanas. Para elas, a vida, tão preciosa dentro do útero, deixa de ter valor do lado de fora.

gravidaDefendem a inviolabilidade da vida, e sustentam que a legislação brasileira, retrógrada ao extremo, basta para qualquer mulher; não veem contradição nenhuma em defender o aborto em casos de estupro e em gritar que toda vida é sagrada. Mas, se é, que diferença há entre os fetos gerados por estupro e os fetos gerados por amor? As “crianças” não são todas iguais?

Hipocrisia é o nome do jogo.

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Defender a criminalização do aborto é fechar os olhos para o fato de que quase um milhão de abortos são realizados anualmente no Brasil, com cerca de 200 mil internações decorrentes de procedimentos mal feitos; é ignorar as estatísticas mundiais que mostram que o número de abortos se mantém estável quando a legislação muda a favor da mulher; é contribuir para a desigualdade social, porque mulheres ricas continuarão fazendo aborto sempre que necessário.

Mas defender a criminalização do aborto é, acima de tudo, um ato de inacreditável soberba, que põe todos os “juízes” acima da mulher que optou por interromper a gravidez. Ora, fazer aborto não é uma decisão fácil ou leviana; nenhuma mulher faz aborto por esporte. Qualquer uma que chega a essa decisão já pensou muito, e já pesou, dentro da sua capacidade, os prós e contras da questão — mas os senhores e senhoras que a condenam acham que conhecem melhor as suas condições e os seus sentimentos do que ela mesma, e se acreditam no direito de castigá-la.

Quem pede a legalização do aborto não pede a ninguém que aborte ou seja “a favor do aborto”; pede apenas que seja dado às mulheres o direito de decidirem o seu futuro por si mesmas, sem correr riscos de saúde desnecessários, e sem que estado ou igreja se metam onde não são chamados.gravidez de reprodução assistida? assistidíssima

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Este assunto me tira do sério muito mais do que qualquer outro (ou, vá lá, quase qualquer outro) porque nele vejo, além da hipocrisia, muita maldade, falta de compaixão e todo o tipo de chicana moral e religiosa para continuar mantendo as mulheres na posição de submissão em que foram mantidas ao longo dos séculos.

A verdade é simples: a criminalização do aborto é um crime contra a mulher.

(O Globo, Segundo Caderno, 4.2.2016)