ARTIGO – Distopias e apocalipses na sala de casa. Por Marli Gonçalves

Vocês estão contando o número de filmes e séries com as ainda mais variadas e doidas formas de distopias e de apresentar o apocalipse, o fim do mundo, e que depois da pandemia aparece sempre batendo mais à porta? Se o que já está bem ruim pode piorar a indústria do entretenimento está nos treinando para enfrentar, se esmerando em nos apresentar as mais variadas e, segundo eles, prováveis, formas que o mundo se acaba; não olhe pra cima, para baixo e nem para o lado.

distopias e apocalipse
Cervos encarando no jardim…

Sempre brincamos. “Quero que o mundo acabe em barranco para eu morrer encostado“, ou “que o mundo acabe em melado para eu morrer doce”. Péssima notícia: mantidas as projeções da ficção científica (e da realidade) não será tão tranquilo.

A pandemia matou muito, se espalhou em todo o planeta, deixou sequelas, na verdade ainda deixa, embora o pior tenha passado: não fez nada bem para as cabeças, inclusive dos criativos roteiristas de filmes e séries. Se antes as ficções já adiantavam nosso fim em epidemias, como zumbis andantes, em acidentes nucleares, guerras, estraçalhados por robôs, tomados por alienígenas ou perdidos em buracos no tempo e espaço, entre outras formas, depois que uma delas aconteceu estão se esmerando. E todos vêm sendo campeões de audiência.

Cotado até para o Oscar e o Globo de Ouro, “The Last of US” (HBO) é um dos tenebrosos. Não bastassem as bactérias resistentes, vermes, os vírus altamente transmissíveis escapando de laboratórios, nos deparamos agora com os fungos. No caso, o Cordyceps. Que se comunicam inclusive por debaixo da terra, crescendo. As pessoas se destroem, mordendo umas às outras, vomitando plantações. O, digamos, engraçado, é que na maioria dos roteiros a coisa é mostrada com a destruição dos americanos e suas regiões mais conhecidas, populosas. Como se fosse um castigo. Ninguém nem precisa mais de ataques terroristas. É morte, porrada, feridas horrorosas, e uma enorme quantidade de ideias para aparecer em festas de terror, também entre ideias libertárias, de questionamentos de força e poder. Muitos figurantes contratados para aparecer e morrer, enquanto os artistas principais se movem na destruição, nos escombros.

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Julia Roberts, em O Mundo depois de Nós

Outro, “O Mundo depois de Nós” (Leave the World Behind), o filme lançado há pouco pela Netflix, para começar a nos aterrorizar já começa trazendo a linda atriz Julia Roberts, também produtora, sem qualquer glamour, mostrando nela as marcas do tempo – bem, mas sem retoques – o que já é de gritar e correr para nos olhar no espelho verificando as nossas próprias rugas. Baseado no livro de mesmo nome de Rumaan Alam, direção de Sam Esmail, tem duração de 2h18m. Você fica ali tentando entender o que está acontecendo, o que aconteceu, que “catso” de ataque cibernético foi esse que faz com que centenas de cervos se reúnam no jardim da casa alugada pela família, e fiquem mirando a garotinha, entre outras cenas que é melhor nem descrever. Fora petroleiro invadindo praia, aviões despencando como pombas abatidas, carros autônomos se esculhambando, drones terroristas panfletando. Você fica aguardando. Puxa, afinal…Tudo quanto é crítica ecológica, humana, racial, social, de domínio digital, está lá claramente enfiada. Você persiste, afinal… Julia Roberts, Mahershala Ali, Ethan Hawke. Resultado: duas horas e 18 minutos se passam e você vai dormir, pensando porque não foi antes. Muito chato. Alguém desistiu de acabar o filme direito e enrolou, dentro dessa onda de distopias, apocalipses, campeãs de audiência. Minha opinião. Depois me conte o que achou.

Com tudo isso fica só melhor entender a enxurrada de filmes e séries coreanas. Virei fã. O cinema coreano está com um nível impressionante de produção. Também, claro, são bem chegados à violência, e têm características marcantes, inclusive de umas excentricidades. Mas as séries de sucesso, até para isso, também tratam de amor, seja com lendas ou demônios, armações terríveis de vinganças, sempre com coreanas e coreanos lindos, jovens, ricos muito ricos com pobres bem pobres e roupas e locais impressionantes. Já achei alguns ideias bem originais. Aprendi sobre costumes e algumas palavras em coreano, além de já reconhecer alguns atores seniores que aparecem em praticamente todos os filmes, mudando só o papel.

São, ao menos, mais refrescantes para quem, como nós, parecemos estar mesmo só esperando o fim do mundo, alguma hecatombe. Com tudo mesmo parecendo tão próximo, tão quente. Parece que seremos punidos por tudo, pelo conjunto da obra.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Já foi assim, já era. Por Marli Gonçalves

Já foi assim. Bateu. Bateu forte um certo saudosismo essa semana, e lembrei muito de como já foram algumas coisas – se melhores ou piores não sei bem, mas eram legais.  Foram transformadas. O que havia aqui e ali, como se comportavam, onde nos divertíamos e crescíamos.

já foi

Em uma escola tradicional do Rio de Janeiro um grupo de estudantes moleques e malcriados se reúne. E, usando aplicativos de deepfake, inteligência artificial para trocar e sincronizar vozes, caras, imagens e o que mais se puder imaginar, criam imagens das estudantes nuas e passam a espalhá-las. Usam um efeito de, digamos, sumir com as suas roupas, usando inclusive as fotos delas próprias em suas redes sociais. Escândalo. Panos quentes para os que foram parar na polícia, porque isso é crime,  e dos bravos, dá cana, e não se tem ainda nem ideia do número de estudantes atingidas nem se foi só na tal escola, escola essa, inclusive, particular, católica, Igreja e Colégio Santo Agostinho; muito menos se sabe como conter a expansão dessas imagens, que podem ir parar em sites de sexo e conteúdo adulto e os estragos durarem anos. No meu tempo diríamos que é uma maldade do tamanho de um bonde, com consequências quase tão imprevisíveis como os das invasões de escolas por estudantes insanos, armados, querendo vingar bullyings sofridos. Ou influenciados por grupos do mal, no tal descontrolado Discord.

Deepfakes e facadas.  O que antes era rusga entre crianças, coisas de primeiros amores, sacanagens como grudar chicletes em cabelos, tachinhas nas cadeiras, resolvidas entre os alunos ou com idas à sala de diretoria, anotações no boletim e suspensões. Agora, crimes, hediondos e odientos.

Esse fato me chamou muito a atenção, até porque estava nessa, de lembrar de momentos, lugares e coisas antigas legais. É mais do que os #tbt que chegam às quintas-feiras, e onde todo mundo aproveita para desovar fotos. Nas redes sociais há muitos grupos de memória de São Paulo, que publicam antigos registros fotográficos de ruas, regiões, arquitetura, costumes, propaganda, moda, fatos, momentos, pessoas. É como se eles balançassem fortemente os galhos da nossa árvore de memórias.  E daí vem uma cascata com uma coisa puxando a outra, nem todas boas, mas algumas que estavam bem guardadas. Quando tem o Antes e o Depois, então, é de chorar.

Tobogã no PlayCenter

Foi a única vez que me atrevi num treco de despencar desses: a lembrança mais legal da semana foi recordar a alegria, os berros e a gargalhada de minha mãe descendo comigo o tobogã do PlayCenter quando este era só um parque de diversões mirradinho, na Rua Brigadeiro Luis Antonio, e do qual revi agora uma foto; talvez você aí nem tinha nascido. Faz tempo, tanto que até o PlayCenter da Marginal, enorme, já sumiu. Puf!

São Paulo tem passado por uma transformação violenta de lugares afetivos, com a demolição de quarteirões inteiros para a subida de prédios de vidros fechados, condomínios cercados e varandas gourmet. Nada contra o progresso, mas é que ele tem chegado violentando muito agressivamente, bem além do que se transforma do analógico ao digital, e que muitas vezes nem nos damos conta. Vocês têm noção do que é usar, por exemplo, o Waze, em carro totalmente analógico? “Vire em 800 metros”, e você lá tentando ver os números virando nos relógios do painel.

O tempo transforma a vida, a linguagem – palavras e expressões que hoje soam até esquisitas quando ouvimos – casa noturna (que perdeu o sentido, por exemplo). Fora as condenadas que passam até por exageros como a polêmica recente que ousou classificar como racista até um termo cientifico, astronômico, buraco negro (“região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada — nenhuma partícula ou radiação eletromagnética como a luz — pode escapar”). Lacração pura, na linguagem atual, proferida por uma ministra, Anielle, que até agora, desculpem, só fez lacrar, para tristeza de quem achou que ela poderia honrar e ser bem mais significativa do que o triste momento que sua irmã, Marielle Franco, foi assassinada.

Vivi, muitos vivemos, novidades, avanços inquestionáveis, melhorias, progressos. Mas que estes sejam os que possamos celebrar para melhorar. O que incomoda é que em muitas coisas, aqui e no mundo, estamos mesmo é andando para trás, e a maior constatação é que isso tudo está se infiltrando e fazendo terríveis distopias virarem realidade, com muita desumanidade.

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MARLI GONÇALVES Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Utopias, Distopias. Realidade. Por Marli Gonçalves

“O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável”.

[John Stuart Mill, 1868, em discurso no parlamento britânico]

 Que será de nosso futuro? Poderemos continuar sonhando os nossos sonhos ou seremos ainda testemunhas de horrores sem fim? O mundo todo se vê diante desse dilema. E são seriados de tevê que batem os sinos do perigo para acordar nossas mentes, em ficções que, mais do que científicas, são políticas. Já assistiu The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia)? Pois fiquei apavorada com a clareza do seu recado, descrito como uma distopia.

Você também sabe e deve ter ouvido por aí. Verdade. Foi notícia. Já soube de mulheres apedrejadas até a morte? De outras que tiveram o clitóris extraído para inibir o prazer? De locais onde mulheres são obrigadas a gerar filhos, mesmo sem querer? Lugares onde só se toleram os padrões de gênero convencionais, e que penalizam com prisão e morte quem ousa o espelho? Sei que há quem pense que se armar é a solução. E que no mundo todo existe muita gente que escarafuncha na religião e na Bíblia até achar algum desígnio ou versículo que justifique qualquer de seus atos violentos.

Há quem queira uma sociedade organizada por líderes sedentos de poder, propondo sim um novo governo, mas militarizado, hierárquico, não laico e no qual as mulheres parecem ser vistas ou como erros ou como ideais para formar família com papai. Menino, menina. Rosa. Azul.

Já se chama Realidade.

Então é isso a distopia? Na definição: “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual”.

As aias da série baseada em romance escrito em 1985 pela canadense Margaret Atwood têm os olhos marejados com olheiras profundas que em si falam de uma tristeza universal. Andam em pares, sempre uniformizadas em candentes e longas vestes vermelhas. Um chapéu-touca branco, engomado, oculta os seus rostos e cabelos. Observadas por soldados fortemente armados vestidos de negro saem apenas quando mandam ou para fazer compras em lugares assépticos. “Aos seus Olhos”, como se homens pudessem ser os olhos de Deus.

Uma vez por mês, em seu período fértil, são encaixadas entre as coxas de suas senhoras que lhes seguram as mãos enquanto assistem silenciosas ao que chamam “Cerimônia”. As pernas das aias são abertas e elas estupradas até que fiquem grávidas. Então, por nove meses as tratam bem, depois as jogam fora. Ainda estão vivas, aliás, apenas porque são férteis. Ali são obrigadas a ter filhos, que logo lhes são retirados, e aí seu futuro fica ainda mais incerto. Se não o fossem, já teriam sido mortas ou logo morreriam em colônias de trabalho forçado e tóxico, o destino das infiéis, ou que tenham feito qualquer coisa não aprovada em sua vida anterior. A que tinham antes dessa “revolução”, ou golpe, que matou e mata ou tortura sem dó. Em nome do Senhor

Chama-se República de Gilead essa sociedade retratada na série. Em um futuro que não parece distante – porque há detalhes que neles nos reconhecemos – um grupo cristão fundamentalista toma o poder nos EUA e lá estabelece esse terrível e cruel regime totalitário. Embora texto escrito há mais de 30 anos aponta para o mundo onde já estamos de certa forma plantados.

Por que é que eu estou falando disso? Achei que talvez fosse bom sugerir que assista antes da eleição. Procure. Quem tem NET, no Now e na Paramount. É de uma beleza emocionante, não por menos tem ganhado vários prêmios. Está na terceira temporada (aqui, ainda na segunda). Sem spoiler. Não sei ainda no que vai dar, estou muito curiosa e ansiosa para saber. Igual a nós todos aqui por esses dias.

The Handmaid`s Tale vale – principalmente para as mulheres – uma reflexão e tanto, muito além de nossas utopias ou de distopias. Muito real. Já vimos algumas partes desse filme. E dessas guerras.

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Marli Gonçalves, jornalista – Gostei de escrever sobre um seriado de tevê. Mas não consegui deixar de pensar nos paralelos.

marligo@uol.com.br e marli@brickmann.com.br

Brasil, 1,2,3…Era uma vez…