ARTIGO – Já foi assim, já era. Por Marli Gonçalves

Já foi assim. Bateu. Bateu forte um certo saudosismo essa semana, e lembrei muito de como já foram algumas coisas – se melhores ou piores não sei bem, mas eram legais.  Foram transformadas. O que havia aqui e ali, como se comportavam, onde nos divertíamos e crescíamos.

já foi

Em uma escola tradicional do Rio de Janeiro um grupo de estudantes moleques e malcriados se reúne. E, usando aplicativos de deepfake, inteligência artificial para trocar e sincronizar vozes, caras, imagens e o que mais se puder imaginar, criam imagens das estudantes nuas e passam a espalhá-las. Usam um efeito de, digamos, sumir com as suas roupas, usando inclusive as fotos delas próprias em suas redes sociais. Escândalo. Panos quentes para os que foram parar na polícia, porque isso é crime,  e dos bravos, dá cana, e não se tem ainda nem ideia do número de estudantes atingidas nem se foi só na tal escola, escola essa, inclusive, particular, católica, Igreja e Colégio Santo Agostinho; muito menos se sabe como conter a expansão dessas imagens, que podem ir parar em sites de sexo e conteúdo adulto e os estragos durarem anos. No meu tempo diríamos que é uma maldade do tamanho de um bonde, com consequências quase tão imprevisíveis como os das invasões de escolas por estudantes insanos, armados, querendo vingar bullyings sofridos. Ou influenciados por grupos do mal, no tal descontrolado Discord.

Deepfakes e facadas.  O que antes era rusga entre crianças, coisas de primeiros amores, sacanagens como grudar chicletes em cabelos, tachinhas nas cadeiras, resolvidas entre os alunos ou com idas à sala de diretoria, anotações no boletim e suspensões. Agora, crimes, hediondos e odientos.

Esse fato me chamou muito a atenção, até porque estava nessa, de lembrar de momentos, lugares e coisas antigas legais. É mais do que os #tbt que chegam às quintas-feiras, e onde todo mundo aproveita para desovar fotos. Nas redes sociais há muitos grupos de memória de São Paulo, que publicam antigos registros fotográficos de ruas, regiões, arquitetura, costumes, propaganda, moda, fatos, momentos, pessoas. É como se eles balançassem fortemente os galhos da nossa árvore de memórias.  E daí vem uma cascata com uma coisa puxando a outra, nem todas boas, mas algumas que estavam bem guardadas. Quando tem o Antes e o Depois, então, é de chorar.

Tobogã no PlayCenter

Foi a única vez que me atrevi num treco de despencar desses: a lembrança mais legal da semana foi recordar a alegria, os berros e a gargalhada de minha mãe descendo comigo o tobogã do PlayCenter quando este era só um parque de diversões mirradinho, na Rua Brigadeiro Luis Antonio, e do qual revi agora uma foto; talvez você aí nem tinha nascido. Faz tempo, tanto que até o PlayCenter da Marginal, enorme, já sumiu. Puf!

São Paulo tem passado por uma transformação violenta de lugares afetivos, com a demolição de quarteirões inteiros para a subida de prédios de vidros fechados, condomínios cercados e varandas gourmet. Nada contra o progresso, mas é que ele tem chegado violentando muito agressivamente, bem além do que se transforma do analógico ao digital, e que muitas vezes nem nos damos conta. Vocês têm noção do que é usar, por exemplo, o Waze, em carro totalmente analógico? “Vire em 800 metros”, e você lá tentando ver os números virando nos relógios do painel.

O tempo transforma a vida, a linguagem – palavras e expressões que hoje soam até esquisitas quando ouvimos – casa noturna (que perdeu o sentido, por exemplo). Fora as condenadas que passam até por exageros como a polêmica recente que ousou classificar como racista até um termo cientifico, astronômico, buraco negro (“região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada — nenhuma partícula ou radiação eletromagnética como a luz — pode escapar”). Lacração pura, na linguagem atual, proferida por uma ministra, Anielle, que até agora, desculpem, só fez lacrar, para tristeza de quem achou que ela poderia honrar e ser bem mais significativa do que o triste momento que sua irmã, Marielle Franco, foi assassinada.

Vivi, muitos vivemos, novidades, avanços inquestionáveis, melhorias, progressos. Mas que estes sejam os que possamos celebrar para melhorar. O que incomoda é que em muitas coisas, aqui e no mundo, estamos mesmo é andando para trás, e a maior constatação é que isso tudo está se infiltrando e fazendo terríveis distopias virarem realidade, com muita desumanidade.

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MARLI GONÇALVES Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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Farofa, Formiga, Medos. Por Marli Gonçalves

Sou boa na farofa, me garanto. Aliás, minhas comidinhas são bem boas – inclusive sempre foram – bem temperadas, tudo muito natural. Quem provou, aprova. O segredo é curtir gostoso o momento da mistura, a criatividade dos envolvidos. O momento da entrada de cada um, remexidos.

Sexy Cooking GIFs | Tenor

Nossa, como ouvimos falar de farofa essa semana! Eram os ecos de uma festa lá no Ceará e que ainda não entendo bem se é festa, se é festival, se é só zoeira, e que zoeira! Se é jogada de marketing, vitrine digital, uma animada, rica e safada festinha de aniversário. Ou, sei lá, se é tendência sair juntando tudo quanto é influencer e jogá-los juntos para ver se procriam com tantos hormônios e apelos sexuais. É like pra lá, like pra cá, like beija coraçãozinho, coraçãoozinho faz live contando detalhes, mesmo os que rolaram no tal quarto escuro, que essa moçada só descobriu agora. Mas que o dessa farofa aí deve ter sido bem decorado, e sem cheiros, preciso lembrar que grudam, sempre terríveis. Imagino seguranças à porta tentando conter o uso dos celulares, agora parte do corpo dessa geração. Cabeça, corpo, membros, celular.

Sobre a dona da festa, Gessica Kayane Rocha de Vasconcelos, que por motivos óbvios se encarnou como Gkay, até agora não consegui chegar a qualquer conclusão definitiva. Uma parte de mim se impressiona com ela e a sua capacidade de aparecer; a outra não gosta do humor, da voz, do tom, não conheço todos os apitos que toca.

Enfim lembrei muito da farofa, esta, da Gkay, que competiu – e ganhou quilômetros de espaços – até contra jogos da Copa, formação de novo governo, e a minha. A minha memorável farofa, nunca igual a outra; nem conseguiria.

Demorei muito tempo para me habilitar na culinária. Minha mãe, que nasceu e teve infância lá na cidade de Formiga, em Minas Gerais, então uma cidade de roça, pequenina, diferente do que me parece hoje, já acoplada à região metropolitana de Belo Horizonte, me afastava de qualquer tentativa. Pois bem, na sua infância lá na década de 30 do século passado, uma amiga foi brincar perto do fogão a lenha, a panela fervente caiu sobre ela e aí vocês já imaginam a sequência que a traumatizou durante toda a vida, como outros tantos traumas que a levaram, assim que pode, bem pra longe dali para nunca mais querer voltar. Dessa forma, passei pelo menos mais de 40 anos de minha vida com mamãe cercando mais o fogão do que o nosso goleiro cercou a rede. Com mamãe não sairíamos da Copa. Era marcação cerrada.

Isso só mudou quando ela começou a ficar doente, um pouco mais dependente e, pasmem, começou a adorar as coisas que eu fazia. Esses anos distantes do fogão não foram em vão: aprendia. A observava. E uma coisa acabamos tendo em comum. Nada de receita, vamos fazendo o que o coração manda, com o que tem por perto, tudo cortado na hora. Meu irmão odeia que eu diga isso: mas também não tenho o costume de provar antes. Gosto desse jogo arriscado (tá bom, ok, errei poucas vezes, servi um chabu, mas tudo bem porque, como acabamos de ver e tomar na cabeça, nem sempre a vitória é garantida).

Fora tudo isso, o duplo sentido usado aqui e ali, no fundo agora escrevo sobre o medo, esse sentir que nos estilhaça e muitas vezes detém por muito tempo. A farofa-festa mostrou, ao contrário, uma diversidade e até sem-vergonhice de encher os olhos, seja como for, o que dá esperança que essa geração que chega seja ainda mais ousada do que nós que abrimos a clareira.

Quanto à minha farofa… como disse, tem mais. As minhas comidinhas sempre foram muito boas. Pelo menos teve muitos que gostaram. Talvez ainda gostem. Vamos em frente.

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MARLI - FLORESMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Não tô gostando nada do que estou vendo. Por Marli Gonçalves

Não queria, mesmo, à essa altura da vida, assistir à essa despropositada série de ameaças e insanidades. Novamente, algumas; alguns fatos, na política, no país. Retrocessos em conquistas. Paralisação em progressos. Certamente se você já os viveu – acompanhou e fez parte de batalhas por mudanças – sente o mesmo; se for mais jovem, anote e acredite: o momento não é nada bom, já fomos melhores. Isso não é progresso.

Não tô gostando nada do que estou vendo

Na semana que estou fazendo um balanço, chegando aos 63 anos, os tais fatos que me surpreendem mal foram fortes. Por exemplo: pais e mães de uma escola de elite paulistana fizeram uma revoltinha. Acreditem, contra trechos do diário da adolescente judia Anne Frank que durante a Segunda Guerra, para sobreviver enquanto pode aos horrores, se escondeu em um porão onde achou forças para escrever o que passava, e um dos relatos mais pungentes sobre o Holocausto, publicado pela primeira vez em 1947. Que trechos chocaram pais em 2021, 74 anos após a divulgação do livro? Ah, o trecho onde ela expôs sua natural sexualidade. O livro estava sendo usado em aulas de inglês, leitura, para estudantes de 10 a 12 anos. Pasmem. Está o maior rebu por conta disso. Em que mundo esse povo vive?

Vejam só. Em 1966, aos oito anos de idade (e reparem que em plena ditadura), tive aulas na minha escolinha sobre todo o complexo sistema reprodutivo, tanto feminino como masculino, as transformações que logo sofreríamos. Explicações objetivas, com visuais explicativos. Lembro até hoje da minha alegria chegando em casa com um pacotinho de Modess. E hoje lembro que se não fosse isso não saberia nada, filha de mãe mineira e pai nortista, em vão ficaria esperando deles explicações sobre “essas coisas”, com as quais nunca tiveram tranquilidade em lidar.

Mas vamos lá, firmes, enfrentando esses dias que passam doidos, rápidos, lépidos, incontroláveis, atordoantes. Quando você se dá conta, pumba, já foi. Mais um ano. E que ano! Parabéns, conseguiu se esgueirar até aqui. Siga, firme! Todos os dias agradeço ao Universo essa chance, que tantos não tiveram – se você está aí lendo, creio que deveria fazer o mesmo, agradecer ao que tem fé. Vacinada, duas doses; entre os ainda apenas pouco mais de 10% da população desse país que claramente desanda, saiu dos trilhos, aparece descarrilado, sem rumo, tornando tudo mais difícil, mais custoso, conservador, burro, atrasado. Irritante.

Estar vivo. Isso hoje é honra valiosa. Mas não queria novamente estar vendo tudo isso acontecer, algumas coisas de novo, chatas, perigosas e repetitivas, e que agora chegam disfarçadas, embaladas em outros papéis, e o que as torna mais tenebrosas.

Estou, estamos, e como diz um amigo, a única alternativa possível ao envelhecer não é nada boa. Sendo assim, resta utilizar tudo o que se aprendeu nesse viver para seguir tendo consciência das mudanças, inclusive físicas, da responsabilidade justamente por isso, da vivência e experiência.

No geral, nós, mulheres, quando o tempo vai passando, vamos ficando cada vez mais invisíveis. Precisamos e continuamos a correr mais ainda atrás de esmolas emocionais, uma parte começa a se podar para se ajustar ao que a sociedade delas “espera”; essa sociedade que ainda hoje acha que tudo pode determinar com sua régua rígida, hipócrita e moralista. E quando, otimistas, achamos que isso estaria mudando, e estava, vem o tapa na cara. Percebemos que devemos continuar guerreando algumas das mesmas velhas lutas de mais de 50 anos atrás, brigando por condições no mínimo iguais, quando deveríamos ter até mais, respeito por direitos, pela liberdade de opinião e opções. Por uma educação decente que conduza as novas gerações aos desafios constantes, inclusive sexuais, e que vêm se impondo abertamente, desafiando limites.

Lá vamos nós, de novo, tendo de lidar com a ignorância, contra um emaranhado de atraso e no meio dessa pandemia que nos aprisiona e deprime. Nas ruas no último sábado, 29 de maio, embora muitos teimem não ter visto, sim, lá estávamos com as mais variadas bandeiras e a maioria não era partidária, vermelha ou verde e amarelo, essa que nos foi arrebatada. Éramos os mais velhos, muitos; os vi em cadeiras de rodas, com bengalas. Os vi, também, coloridos, com filhos e netos aos quais ensinavam cidadania. Todos conscientes, guardando distanciamento, certamente ali maioria já vacinada. Entre milhares, todos com máscaras usadas corretamente, conscientes do primeiro passo necessário para protestar. Também não estão gostando nada do que estão vendo.

Começamos a expressar mais claramente, nas ruas, o que se multiplicará nos próximos meses, esperamos de forma pacífica. O que renova a esperança e fará, com certeza, que se estanquem esses retrocessos. Que consigamos acabar com essa gente idiota, burra, cretina, nojenta que nos faz perder tempo quando tínhamos tudo para estar na vanguarda.

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Marli - foto Alê RuaroMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Soluços, prantos e os novos sentidos. Por Marli Gonçalves

Ocorre uma verdadeira revolução dos sentimentos, sentidos e da natureza humana. Os cinco sentidos mais conhecidos, paladar, olfato, visão, audição, tato, estão transtornados. Os prantos e os soluços pela perda de tanta gente amada agora são rotina

Haroldo Lima – 43 anos de amizade, e a tristeza da perda

Não sei como um dia serão atualizados, estudados ou descritos esses sentidos, somados a tantos outros de que o corpo humano é capaz. Sei apenas que essa semana experimentei fortemente dois deles, soluços e prantos. Depois de tomar um soco no estômago ao saber da morte, em Salvador, de Haroldo Lima, pondo termo a uma amizade mais do que especial e de admiração mútua de 43 anos, caí em prantos, depois transformado em soluços; em seguida, uma prostração incontrolável tomou conta de meu corpo. E se passou um filme de todo um tempo e acontecimentos.

Aos 81 anos, vítima de Covid, a morte de Haroldo Lima deixa, antes de mais nada, um hiato no país, onde em toda sua existência esteve sempre – se de forma certa ou errada, radical ou não, não cabe agora analisar – à frente da luta pela liberdade, igualdade social, identidade nacional, associando garra, conhecimento geral e uma doçura poética e destacada que todos o que com ele conviveram podem atestar.

Mas aqui, na minha vida, ficou um buraco. Das poucas pessoas que me restavam constantemente preocupadas comigo, que me incentivavam em todos os momentos a seguir firme, a escrever, publicar. E a única, além de meu pai, que só me chamava por Márli, acentuando assim com seu sotaque, dando outra saborosa sonoridade ao meu nome.

Na clandestinidade, sobrevivente da chamada Chacina da Lapa, ocorrida em 76,  a primeira vez que o vi chegava todo arrebentado de torturas sofridas para o “julgamento” (se é que aquilo podia assim ser chamado) ali na Justiça Militar, um predinho na Brigadeiro Luis Antonio, e que naquele momento, por artifícios e atividades políticas, pouco mais de 18/19 anos de idade, na faculdade, eu conseguia acompanhar. Claro, mentindo para os soldados da porta, como se fosse filha de algum daqueles fardados de cara feia e olhos tapados para as torturas sofridas, visíveis no rosto e em todo o corpo, de seus réus.  O advogado era José Carlos Dias, destacado criminalista que anos depois foi Ministro da Justiça de FHC. Julgamentos inesquecíveis, que marcaram minha vida e trajetória.

Dali, depois integrando o Comitê Brasileiro pela Anistia, CBA, nos encontramos, ele e todos os outros muitos  presos políticos desse momento, no Presídio Militar do Barro Branco, na militarizada Zona Norte de São Paulo. Todos os sábados os visitava. Acompanhava as suas famílias, seus filhos ainda pequenos. Trocávamos conhecimento sobre feminismo, marxismo, política, geologia. (Procure saber mais. Haroldo também foi deputado constituinte; entendia disso tudo, daí ter sido diretor geral da Agência Nacional de Petróleo, ANP, durante todo o Governo Lula). No particular, o chamava de Mister Petrolinho.

Pois foi ali, na prisão, que nasceu essa amizade especial que perdurou até a última quarta-feira, quando essa maldita doença o levou. E amizades nascidas na luta, na solidariedade, no sofrimento e nas vitórias, têm bases mais sólidas.

Volto assim a falar dos sentidos, do olfato e do paladar perdido, do ar que não se consegue respirar quando se é contaminado, do gosto amargo de tantas vidas perdidas, da falta de tato,  visão e a surdez dos dirigentes que deixaram que as coisas tanto se agravassem e que pessoas fundamentais para cada um de nós estejam sendo dizimadas por não terem tido nem ao menos tempo de serem imunizadas.

Agora resta esperar que os prantos, os soluços, a dor dessas perdas, tornem todos os nossos sentidos mais fortes e que possamos continuar o sonho que todos eles sonharam, de transformação desse país em um lugar melhor e justo.

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PS.: Há alguns anos, a meu pedido, para um livro que acabou não sendo publicado, Haroldo mandou essas linhas, até agora inéditas:

“Sábado era o dia de visita no Presídio Político de São Paulo, o presídio do Barro Branco, onde eu cumpria pena, em 1977. Os familiares traziam aconchego, notícias boas e ruins. E havia gente que se sujeitava a ser “fichada” e “revistada” para se solidarizar conosco. Nós, presos, ficávamos sensibilizados.
Uma jovem de 19 anos aparecia aí, abraçada com seu jornal, o “Nós Mulheres”, dando força para a Anistia, era Marli. Conhecimento feito nessas circunstâncias nunca será olvidado.O tempo passou, veio a Anistia, duas décadas na Câmara, quase uma na Agência Nacional do Petróleo e, lá pras tantas, passo a receber, semanalmente, uma crônica bem urdida, escrita com maestria, sobre a vida, costumes, ideias e …mulher.
Quem a escreve? Marli Gonçalves.Já não é mais um projeto de jornalista, mas uma cronista da estirpe dos escritores. Seus comentários revolvem o cotidiano, a “vida como ela é”, com ela gracejam, batem num lado e noutro, transparecem espontaneidade e vislumbram na mulher trejeitos inesperados. 
Como escritora que se lança, Marli Gonçalves perfila-se ao lado dos que se esmeram na composição do texto, na arte de burilar a frase primorosa, precisa, concisa, ritmada e sonora. O vernáculo ganhará com a prosa apurada que brota de sua lavra.”     

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Saudades de mim, saudades que temos de nós. Por Marli Gonçalves

Ninguém sabe como começa, nem quando termina ou até onde vai, se voltam em algum ciclo nos próximos meses, mas eles simplesmente aparecem. São os desafios do Facebook. Parece chiclete. Pode ser uma brincadeira, uma campanha altruísta-solidária (e que em geral é sem nexo), algum momento cultural. Entre outras está rolando agora uma de fotos antigas da pessoa, de algum momento lá atrás. E vou dizer: está bonito, desse desafio gostei. Saudades de nós, saudade de mim, saudade de você, de quando era corajoso, sem culpas cristãs, e não acreditava em maledicências que tentavam nos separar

Claro que aceitei. O problema é que para quem está na minha geração e nas de meus amigos, o que significa o ir lá atrás é ter de entrar em um túnel do tempo forte, de algumas dezenas de anos. Tempo do filme Túnel do Tempo. Do rock instigante. Tempo do gravador de rolo, da fita cassete, do cabelo pigmaleão 70, das pulseirinhas coloridas de fio de telefone ou de conchinhas. Sandália de pneu. Batik. Túnica. Ninguém tinha tatuagem, acreditem.

Fotos analógicas, aquelas tiras de contatos jamais revelados que agora olhamos contra a luz tentando identificar os contornos, guardados em envelopes compridos. Fotos já detonadas pelo tempo, sépia, com mofinhos, retirada de caixinhas, álbuns decorados, porta-retratos guardados. Tem de escarafunchar tudo. E aí é igual revisitar sua própria vida, sua adolescência, “crescência”.

Ninguém combinou nada, ao que eu saiba, mas pelo que entendo está valendo tudo, desde que antigas, achados – desde quando se entendeu como gente até quando começou um pouco da ascensão profissional. Quando os rapazes tinham cabelos. Quando os cabelos eram naturais. A primeira gravidez. O primeiro casamento, aquele amor jurado em barracas de camping, portão de casa, férias de verão na praia. Quando tínhamos algum frescor. Quando acreditamos, quando procuramos e escolhemos as imagens hoje, o quanto éramos felizes outrora. Naquele dia. Naquele fato. Com aquele sorriso. Com aquelas pessoas, muitas das quais até já não estão mais por aqui. Outras foram rasgadas das fotos, ou recortadas cuidadosamente com tesourinhas.

Eu estou adorando ver o resultado desse desfile de imagens. Legal lembrar de como as pessoas eram quando nos conhecemos. Os tempos de faculdade. Os amores antigos. Como as pessoas se transformaram com os anos, muitas para melhor; outras, nem tanto.

Legal ver a escolha e até a segurança de muitos em expor momentos bem doidos, mas sempre muito especiais para cada um. Quando o corpinho mostrado hoje vira um corpão, que arranca elogios como se de hoje fosse. Fixo imaginando o quanto devem ser legais também as fotos que não estão sendo mostradas, mas que passaram diante dos olhos nessa revisão. Penso e digo por mim que ainda não cheguei nem perto das caixas maiores onde as minhas estão guardadas. Só com as avulsas já fiz uma festa. Já lembrei, ri, chorei, me emocionei, guardei de novo. Parei para pensar em cada um dos momentos.

Presenteei amigos enviando a eles fotos onde eles estavam e que achei entre as minhas coisas. Uma delícia. Como foram parar lá, quando foi esse click, sempre uma lembrança. Toca escanear para lhes dar mais tempo de vida, a digital.

Esse desafio tem um saudosismo bem significativo no momento em que vivemos. Percebo uma busca por autoestima, por um momento nacional mais orgulhoso, por aqueles que fomos e sonhos que podem ter se perdido por aí nessa estrada tão cheia de pedras da existência e coexistência humana. Ou não.

Podem ter sido realizados e a gente até tinha esquecido que antes – um dia – foram apenas sonhos.

“A saudade que dói mais fundo e irremediavelmente é a saudade que temos de nós”.

(Mário Quintana)

euMarli Gonçalves, jornalista – Histórias que dão filmes, quadro a quadro.

Brasil, São Paulo, baús nas redes sociais. 2017

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