ARTIGO- Cosmopolitas. E apavorados. Por Marli Gonçalves

O conceito de que somos cosmopolitas, digamos, precisa ser aberto considerando sua definição oficial. “Cidadãos do Mundo”, aqueles que acreditam ser o mundo todo a sua pátria e mais uma série de patacoadas bonitas, sobre pessoas que viajam muito e se adaptam às diferentes culturas e modos de vida. Conceitos filosóficos que buscam nos igualar no mundo globalizado, o que é quase impossível com tantas e reais diferenças nesse momento tão estranho.

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Cosmopolitas ou não, se realmente todos nos conectássemos nesse belo sonho de união e convivência o que ouviríamos assustados seriam gritos lancinantes de socorro, porque parece que o freio se soltou de vez e a violência de humanos contra humanos pelos mais variados motivos saiu do controle faz tempo, levando junto o bom senso, os princípios humanitários. E todo esse amor, paz, igualdade, fraternidade e união propostos em larga escala especialmente nessa época do ano se desfaz no ar. Vira fumacinha de um noite de verão que se aproxima, mas que já nos ferve.

Então estamos todos bem assustados?  Pena que a verdade seja que nem todos – há os que vêm se vangloriando e cada vez mais crescendo para cima da liberdade, em nome da economia, da riqueza, do poder. Uma guerra não acaba e logo vem outra, se somando sanguinária. Nem bem se fala em um assunto e chega agora mais receio ainda de malucos invadindo territórios aqui bem pertinho, e buscando envolver até quem está quietinho em casa. Sobra pra todo o mundo, isso sim.

Cadê a reação? Otimista que sou, a mim parece próxima quando cada vez ouço as pessoas dizendo que não aguentam mais tanta violência, tanta guerra, matanças, tentando fugir dos noticiários de todas as formas, buscando quase se isolar. Penso que foi exatamente assim que surgiram os movimentos do final dos Anos 60. O “paz e amor”, os hippies, Aquarius, os movimentos de libertação de tudo, o amor livre.  Colorido que se espalhou e com extraordinários acontecimentos, artistas, líderes, obras que sobrevivem, marcantes. Ali era muita guerra, e uma juventude ávida pela vida. Buscavam a luz, a alegria, cantavam e dançavam como se vivessem os últimos momentos, mas foi só assim que sobreviveram em seus protestos. O problema é que hoje parece que essa geração envelheceu e esqueceu suas propostas, talvez por medo que agora elas possam se sobrepor ao que obtiveram. Não é por menos que também tanto ouvimos novamente falar de lutas por direitos civis, feminismo, contra o racismo, e pela identidade de gênero, além dos alarmes de emergência climática. Movimentos que sobrevivem, mas novamente abafados por violências também sem igual que os classifica até como terroristas, como fez a Rússia.

A coisa mais globalizada que vivemos recentemente foi a pandemia, o horror do qual surgiram cenários antes inimagináveis, e ainda mais mortais. Autoridades e chefes de Estado fazendo de seus povos cobaias ou os jogando no fogo com suas inações e declarações estapafúrdias e negacionistas. Juntos já eram um prenúncio da ascensão novamente de ideias perigosas, primitivas, reacionárias, racistas, de dominação social, religiosa, econômica. Tentam apagar as conquistas tão duramente obtidas no século passado.

Para tanto usam com sucesso a mais moderna das ferramentas, a tecnologia digital, veias abertas onde correm suas intenções e contaminam, para grande tristeza, as gerações atuais que desatentas e despreocupadas buscam ali alimentos e saem envenenadas. E envenenando.

Por aqui, sempre não tomamos providências quando elas deveriam ter sido tomadas, e não cortamos o mal pela raiz. Então, depois, assistimos abismados ao crescimento das ervas daninhas nos provocando em todos os fronts e se fortalecendo bem debaixo de nossos pés, aqueles mesmos que como cosmopolitas batemos no peito dizendo “minha pátria são meus pés”.

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marli - imprensaMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Se os carros falassem. Por Marli Gonçalves

Os carros andavam em total baixão, dispensados sem dó, trocados por Ubers, motos, transporte coletivo, bicicletas, patins, rodinhas, patinetes. Agora? Voltando gloriosos, cheios até de sentimentos, vejam só. Avançaram muito junto às famílias dos humanos nesse ano pandêmico, uma coisa impressionante. Faltam falar. Se bem que…
carros

Alguns até meio que  já falam. Cada vez mais digitais, com controles ligados à internet, redes sociais, aplicativos e câmeras que praticamente os manobram sozinhos para os motoristas na sempre odiada baliza. E dizer que aquele apito que davam ao se aproximar do carro de trás e da frente nas estacionadas já era um avanço. Pensar que suas piscadas de luzes no painel já eram alguma interação, e que os barulhos que emitiam de repente tentavam a comunicação com seus donos. Que os “grilos” já eram uma linguagem.

Agora? Entraram na nova e gloriosa era do Drive-thru, do Drive-in, este completamente modificado do que outrora, verdadeiros motéis mais baratos e descomplicados. Têm vez. Já meio que falam; robóticos, mas se comunicam. Alguns até se recusam a sair do lugar, empacados como mulas, enquanto não estiver tudo ok, todos com cintos de segurança, portas travadas, coisas assim. Até a chave da partida anda virando é botão de apertar.

Nesse 2020 frequentam pomposos – juntinho com suas donas famílias – o cinema, o teatro, casamentos, shows, e essa semana os vimos em comícios e, inacreditável, até na igreja, fiéis. A Marcha para Jesus, a grande e anual manifestação evangélica liderada pela Igreja Renascer, este ano não foi marcha; foi carreata, com mais de dez mil, entremeada por trios elétricos. E terminou com 1500 deles no Anhembi em São Paulo, assanhados, ouvindo discursos e cânticos, além de shows. Tive dúvida de um detalhe: na Marcha, os fiéis costumam usar papeis dentro de seus sapatos, debaixo de seus pés, onde colocam os pedidos, as graças alcançadas, e sobre as quais andavam nas grandes caminhadas. Esse ano não sei como foi feito, se os pneus tiveram alguma participação.

Pois bem, não é que eles, os carros, participam ativamente das solenidades? Buzinam, piscam faróis, o som do rádio num frequência especial repica lá dentro o que está no palco. Faltam bater palminhas. São eles que manifestam os sentimentos de seus donos. O velho Herbie, o fusca do famoso “Se o meu fusca falasse”, o 53, criado em 1968, deve andar por aí todo deprimido com tantas novidades.

Mas não para aí. Antes, nos fins de semana, os amados carros eram lavados, polidos, vistos brilhando nas portas das casas – era comum ver isso. O orgulho da propriedade. Seus donos eram levados por eles para paquerar (sim, essa é a expressão) outras pessoas, em outros carros. Na Rua Augusta houve até um programa de rádio que era feito exclusivamente para ajudar esses encontros – na ladeira, carros rodavam subindo e descendo – emitindo recados, onde eram eles os citados. “A loira do fusca azul” quer falar com o “rapaz da Belina amarela”. Era bem legal.

Agora? Já tem até apartamentos sendo feitos especialmente para que eles – os carros! – possam ser guardados dentro de casa, tipo na sala – sobem pelo elevador. E você achava que o Eike Batista que guardava um dos dele, especial, na sala, era maluco? Pois bem, um sertanejo desses aí acaba de comprar um apartamento assim, lá em Goiânia – e divulgar pra quem quiser babar. Tudo bem, já sei, você aí não tem espaço nem onde deixar sua bicicleta…Fazer o quê? Quem pode, pode.

Sempre estranhei um pouco essa coisa, muito paulistana, inclusive. Via gente que, se pudesse, levava o carro para sentar na mesa do restaurante. Agora a coisa se adiantou. Há várias montadoras que até antes das pandemia já desenvolviam estudos acelerados para implantar a inteligência emocional nos novos bichinhos que, assim, seriam capazes até de “conversar “com os seus motoristas (claro, também há estudos para que não precise mais nem de motoristas nos carros autônomos). Eles discutiriam futebol, por exemplo. Perceberiam se o cara está com sono e o despertariam “puxando assunto”. Uma humanização. Já houve experiências que mostraram carros emitindo sentimentos reais, pedindo beijos, abraços, carinhos. Piscando, mandando beijinhos pra quem passasse por eles.

Enquanto esperamos que os carros ao menos não sejam mais usados para matar, guiados por bêbados ou irresponsáveis, ficamos por aqui, sonhando se algum dia teremos como comprar essas novidades bem caras, distantes dos comuns.

Eu, por exemplo: coitado do meu “Poiszé”, tão antigo que ainda é totalmente manual, analógico. Até para ver o velocímetro – e respeitar velocidades máximas – tenho de contar risquinhos. E quando o Waze fala “em duzentos metros vire à direita” tenho de calcular nos dedos olhando o odômetro. Ó, vida!

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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