ARTIGO – Não existe Democracia com facções. Por Marli Gonçalves

Não há democracia quando chegamos a um ponto em que continuamos nessa toada, misturando facções, chacinas, supostos suspeitos, justiçamentos, guerras, ações policiais, noticiário do dia esquecidos à noite, ou melhor, atropelados e abafados por coisas ainda piores, mentiras espalhadas, e especialmente aparentando certa normalidade como se normais os fatos fossem.

democracia

Não há nada de normal. Nada. Não se pode aparentar normalidade quando se insere nos grupos de poder e ação fatos complexos como os que presenciamos. Quatro médicos conceituados, no Rio de Janeiro para participar de um Congresso internacional, atravessam a rua diante do hotel onde se hospedam para aproveitar o beira-mar em um dos quiosques da orla. Um carro para e dele descem três homens que metralham o grupo sentado à mesa. Em 30 segundos três deles estarão mortos, um ferido seriamente, e o Brasil todo abalado. Depois, em menos de 24 horas, caso “resolvido”. Como se a vida pudesse voltar ao normal. Inclusive no próprio quiosque que poucas horas depois recebia alegremente seus clientes, sentados na mesma mesa com marca de tiros e certamente rastros de sangue. Um jornalista até reparou que sobre ela botaram uma garrafa de pimenta, ao lado dos guardanapos. Um requinte incomparável.

Traficantes teriam confundido um dos médicos com um miliciano marcado para morrer porque tinha matado um traficante líder. É guerra na Zona Norte do Rio de Janeiro. Guerra pelo poder e comunidades. Guerras que se espalham pelo país. Todos matam e muito. Polícia, milicianos, traficantes, golpistas. Vou incluir aqui também bolsonaristas inescrupulosos que distribuem o ódio, a ode aos armamentos que se espalharam como nunca, sempre tentando atentar contra o que for contra os seus preceitos, sejam religiosos, estéticos, políticos ou comportamentais. Distribuíram com rapidez recorde sua baba sobre a deputada Sâmia Bomfim, do PSOL, irmã de um dos médicos assassinados. Crueldade e oportunismo.

O caso teve repercussão mundial. Em poucas horas, resolvido. Pela polícia? Um pouco, sim, porque todas foram para lá. Mas, mais do que isso, os culpados pelo ataque não amanheceram o dia seguinte, não viram a luz do outro dia: pena de morte. Da Justiça? Não! Dos próprios traficantes do Comando Vermelho que não perdoaram o erro que tanta atenção chamou e os quatro assassinos trapalhões foram condenados pelo seu “tribunal”. Tribunal? Se reuniram na comunidade, com algum juiz ou autoridade? Não! Estavam presos no complexo penitenciário do Bangu 3 e em videoconferência deram a ordem. Julgaram. Fim.

Você entendeu bem. Vou repetir: decisão tomada em videoconferência de presos dento do Presídio de segurança, onde inclusive deveriam estar funcionando bloqueadores de comunicação. Resultado final: três médicos mortos por engano, mais quatro traficantes, esses com corpos encontrados espalhados na região, punidos imediatamente por terem errado ordens de seus líderes. Sete mortos. Chacina.

Percebe que falamos de milicianos e traficantes como se eles fossem praticamente membros da sociedade? Normalmente, a sociedade civil tem instituições, como a ABI, OAB, entre outras. O poder paralelo não é uma instituição, mas é quem tem dado as cartas, inclusive de dentro das instituições oficiais. Polícia para quem precisa. Os caras sabem exatamente quem manda no quê, onde lideram, seus nomes e até apelidos. Ouvem as suas conversas em investigações lentas, que duram anos, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. O erro do ataque aos médicos foi detectado logo porque há um grupo sombra, assim se denominam, que já ouvia há um ano e meio as conversas e ouviu mais essa que percebeu que os médicos foram executados porque um deles era mesmo a cara do miliciano marcado, o tal Taillon, que inclusive, sabe-se, mora ali bem perto, também na Barra da Tijuca.

O reconhecimento facial deles está com defeito, e ainda podemos todos ser confundidos. Eles mandam e desmandam. É Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando, Primeiro Comando da Capital, PCC, Primeiro Comando Mineiro, Paz, Liberdade e Direito, Comando Norte/Nordeste, Bonde dos Malucos, nomes de facções criminosas espalhadas de Norte a Sul do país – já se conta que há 53 delas. Fora as milícias, grupos paramilitares se espalhando e impondo terror onde se infiltram como cupins, dominando e amedrontando comunidades inteiras.

Não aguento mais ver – neste e a cada caso frequente – a cara de tacho das autoridades, de todos os níveis, com seus terninhos e caras consternadas dizendo que estão sendo tomadas providências, que investigações estão em curso. Inaceitáveis explicações em gerúndios.

Não há democracia que sobreviva a essa insegurança. Não há democracia.

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MarliMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Juras de Junho. Por Marli Gonçalves

Junho sempre é mês especial, até porque nele inclusive fecho mais uma dessas voltas ao redor do Sol na vida louca. É mês que marca muitas festas populares, muitos santos reverenciados, promessas, arrasta-pés que levam a um estado de embriaguez e cheio de corações cata-enamorados espalhados nas vitrines. Mas…

Como anda difícil simplesmente ser feliz, viver a vida, quando se é sensível. Quase metade do ano já se foi e, teimosos, nos mantemos esperançosos neste imenso país tropical, nessa gigantesca aldeia global, onde creio que, espaço tem, deve haver algum cantinho desconhecido onde ainda seja possível manter-se alheio à realidade assoladora e aos fatos inquietantes próximos ou distantes.

Aiaiai, quanto mais a gente reza, mais o nosso coração sofre com as notícias que chegam de todos os lados, uma sobrepujando a outra, como se todas elas fossem naturais e devêssemos apenas seguir em frente.

A imagem daquele homem assassinado sufocado por gás dentro de um carro de polícia no Sergipe seguirá aterrorizando nossos sonhos e ficará esperando a Justiça onde quer que se vá. Assim como daquele que teve seu pescoço apertado por coturnos longos minutos se debatendo. Tudo registrado, provado, visto. Real. Se repete.

A malvadeza, se pode dizer, atinge a todos: especialmente os negros, as mulheres, as crianças, os povos originários que vivem naquele cantinho onde havia paz e uma comunidade. Ou nas comunidades emanadas da miséria que recebem a visita do que seria a lei, e o saldo são corpos cravejados contados em números flutuantes.

E ainda tem guerra, melhor, guerras, muitas, as reais e as que travamos diariamente contra nossos próprios medos. As crianças mortas por balas que zunem e elas não tinham a menor culpa de haver uma indústria que movimenta toda a política internacional, dos Senhores das Armas, e que também aqui, infelizmente, encontra guarida e incentivo.

A loucura piorada que atinge a todos de uma forma ou outra, seja os jovens desesperançados que compram as armas e matam, sempre pensando numa vingança que os dominou durante a vida social com a qual não souberam lidar, seja a que libera a maldade em atos inexplicáveis, como essa recente maldição das madrastas – uma que joga o enteado pela janela durante uma briga; a outra que trama envenenar os seus, mata uma, dois meses depois tenta acabar com o outro, e da mesma forma, ainda por cima fazendo sofrer, por envenenamento. Eram pessoas acima de suspeita, sabemos depois.

Pessoas acima de suspeita estão sempre muito perto de nós. E as que suspeitávamos e tentamos tanto avisar, sem sermos ouvidos, do perigo que representavam, estão aí, aqui, ali, inclusive mandando, governando vários povos, como o nosso, e cercando-se sempre de outros seres piores ainda.

Ah, mas a história diz que sempre foi assim. Não. Não tem de ser. Tanta modernidade, tecnologia, vem servindo para o quê? A comunicação que acreditávamos ampliada nos divide, e sem que possamos nem reagir já que são como fantasmas, muitas vezes criados apenas para o terror, para a mentira, para espalhar o ódio.

É junho. Sabia de uma coisa? Eu não sabia. Junho sempre tem chuva de meteoros. Nenhum mês começa no mesmo dia da semana que junho em qualquer ano. E todos os anos termina no mesmo dia da semana que termina março. Começa no mesmo dia que fevereiro do ano que vem. Nele, a floração das rosas atinge seu máximo e junho já foi chamado de Rosa Lua. Não faz diferença, não muda nossa vida, mas é leve.

Aqui, comemoramos três populares santos: Santo Antônio, São Pedro, São João. Vamos ver bandeirinhas coloridas espalhadas, vai ter quentão, danças de roda e a quadrilha, mas a boa, aquela que nos junta batendo palmas, cantando, dançando, tentando nos embriagar para esquecer que, como já disse, repito: aiaiai, quanto mais a gente reza, mais o nosso coração sofre com as notícias que chegam de todos os lados, uma sobrepujando a outra, como se todas elas fossem naturais e devêssemos apenas seguir em frente .

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Marli - perfil cgMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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