ARTIGO – Migalhas que catamos. Migalhas que perdemos. Por Marli Gonçalves

Migalhas que catamos, igual à história de João e Maria, que espalhavam tecos, migalhas de pão, para marcar os caminhos e não se perderem, mas elas foram (ou estão sendo) comidas. Assim, está sendo, infelizmente, com as mulheres, sempre na luta e, ainda, agora, lidando com os absurdos retrocessos em suas bravas conquistas. Mas não são só as mulheres.

Migalhas João e Maria

Todo ano, a mesma coisa. E o ano que vem, parece, tem mais. O histórico 8 de Março, Dia Internacional da Mulher – veja bem, dia marcado pela luta secular, não é mês, nem semana, é dia – marca uma avalanche de notícias, uma atenção especial; mas os dados que surgem são ainda estarrecedores em nosso país. Continuamos em filas por empregos, saúde, reconhecimento de jornadas, salários iguais e segurança, entre tantos outros temas que nos são tão caros.

2023 bateu o recorde de feminicídios no Brasil, 1.463 mortes. Fale esse número bem alto, para ouvir bem tal absurdo. Uma alta de 1,6% em relação ao ano anterior, o maior da série histórica. Um feminicídio, quando o assassinato é motivado apenas pelo fato de ser mulher, a cada 6 horas, metade deles por armas de fogo, a maior parte de mulheres negras e pobres, a maioria dentro de suas casas, vitimadas por companheiros e ex-companheiros. Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são estarrecedores.

Mulheres de todo o mundo vêm sendo massacradas em pleno Século XXI, massacre ampliado com as guerras, onde elas e suas crianças têm sido as maiores vítimas, tudo diante de nossos olhos. Mas precisamos tratar do que ocorre aqui, nos nossos caminhos, nas migalhas comidas pelos retrocessos muitas vezes antes que possamos desfrutar.

Ouvi com atenção o – desculpe, fraco – discurso feito em horário nobre pela ministra Cida Gonçalves, Ministra das Mulheres do Brasil, nome pomposo. Fiquei surpresa, sim, mas com o número de vezes que a fala grifou o nome do presidente Lula, como se este fosse o Salvador de nossos mais íntimos desejos. Cinco vezes, se não errei a conta. Mais um pacto anunciado, o de Prevenção aos Feminicídios. E mais medidas protetivas, dessas muitas que na Hora H, conforme os números claramente mostram, não têm funcionado. As armas de fogo amplamente difundidas especialmente no governo anterior estão aí, e matando a todos nós brasileiros, homens e mulheres, espalhadas, nas ruas, trazendo o horror. Dependendo do Estado o efetivo policial anda bastante ocupado em matar antes de perguntar, e mais mulheres e o sofrimento de ver seus filhos sendo levados, uma espécie de morte em vida para mães, e que não entra nos registros.

Como mulher e feminista, lido com esse tema há praticamente 50 anos, e me surpreendo ao ver que em praticamente todos os temas estamos na mesma e cansativa luta, embora estejamos conseguindo ampliar os espaços no mercado de trabalho e sermos mais notadas, inclusive nas reinvindicações. Só para lembrar o óbvio: somos mais da metade da população; ninguém, decididamente, está nos fazendo favor algum.

Há, contudo, e é preciso que atentemos urgentemente a isto, uma onda alta, muito perigosa para todos, homens e mulheres, já visível, de conservadorismo reacionário vindo das ervas daninhas que se proliferam ladinas em todos os cantos, nos parlamentos, igrejas, no poder, adentrando escolas e instituições, muitas vezes aproveitando a distração dos pescoços curvados em celulares ouvindo e crendo em líderes de barro.

São tapas em nossos rostos. Censura de livros em alguns Estados, como o que fazem de “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, tratando do racismo. Um moleque sem noção, deputado federal, Nikolas Ferreira, à frente da Comissão de Educação, da qual não tem a menor ideia. A mais importante Comissão, de Constituição e Justiça, presidida por uma inexpressiva deputada, Caroline de Toni. Escolhidos pela atual e triste oposição que se traveste de verde e amarelo. Em São Paulo, a Assembleia discute, acreditem, a implementação do modelo de Escola Cívico-Militar, e em áreas de maior vulnerabilidade social. Disciplina baseada obviamente em valores militares, que já vivemos para ver e sentir.

Apenas alguns itens de uma lista macabra. Agora, também em verde e amarelo, o lançamento de uma linha de perfumes Bolsonaro, além das botinas, canecas e chinelos com seu nome.  Estão brincando. E nós a cada dia ficando sem lado no meio de todo esse bombardeio que já empesteia o ar.

É preciso gritar. E alto. Rápido. Antes que nos percamos definitivamente em nossos caminhos e acabemos encurralados em jaulas onde nos engordarão tal como na história de João e Maria. Nós, as Marias e os Joões, e nos querem como alimentos. Isso não é uma história infantil. O final, mantido assim, não é feliz. E já “Era uma vez”.

_____

marli goMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

ARTIGO – Sob e sobre ameaças. Por Marli Gonçalves

Vivendo sob constantes ameaças, e que só aumentam, vindas de todos os lados. Não bastassem as lutas para controlar a pandemia, o surgimento de novos vírus e outras doenças esquisitas, os problemas com energia, água, temperatura, economia, no Brasil vivemos mais um pesadelo, o político. Qualquer homenzinho, ou serzinho verde oliva, agora aparece cheio de marra, e ameaçando a democracia.

Ameaças

Temos muitas dúvidas, perguntas, pedidos de esclarecimentos, e temos ouvido quase sempre as mesmas não-respostas. Repara quantas vezes, nós, da imprensa, perguntamos, perguntamos. “Mas até o momento não obtivemos resposta”. Todo dia. As revelações, gravações, denúncias, fatos e fotos, falas e gestos se sucedem.  Parece que estão brincando de governar, e estão; sem rumo. Mas jogam pesadamente pelo poder – e com as nossas vidas.

Para quem já viveu momentos difíceis, apenas uma clareza: antes, sabíamos exatamente o que, quem, como estávamos combatendo ou de quem deveríamos nos defender. Agora, apenas a ignorância grassa e é como se o inimigo morasse ao lado, e possa surgir nos surpreendendo. Os descobrimos entre pessoas próximas, amigos, familiares, numa divisão sem igual. Contaminam todos os ambientes.

Os ataques podem ser tão sub-reptícios que até uma deputada acorda machucada, com fraturas, e sem saber exatamente o que ocorreu denuncia poder ter sofrido um atentado. Muito louco? Não, se pensarmos que agora tudo é mesmo possível, inclusive para quem amigo deles era; e inimigo deles, virou. O que aliás tem sido muito comum: o abandono desse barco que navega sem sentido e em uma tenebrosa maré. Maré obscura, armada, violenta.

Ultimamente, não sei como, descobriram uma palavra que usam para tudo e que duvido saibam exatamente qual o seu sentido: “narrativa”. Escuta só uns minutinhos de CPI. Escuta um minutinho do discurso de justificativas e negações deles. Até o presidente, que não é o maior afeto ao vocabulário humano, outro dia disparou “narrativa” para lá e para cá. Lá vem ela: tudo que os afeta é narrativa incorreta.  Só a deles – e que vem eivada de ódio e erros – é que deveria ser ouvida.  Tentam adestrar com decorebas os seus bovinamente seguidores, pouco importa o que falam, mesmo que logo depois contradigam-se.  O recheio de informações falsas que usam cria uma espécie de hipnotismo, repetições ao molde de treinamento de animais. Contam um conto, aumentam muitos pontos.

Isso não é ideologia, direita, esquerda, volver, nem centro, nem de cima nem de baixo. Para ser ideologia tem de haver inteligência, conhecimento, estudos, lógica, contraposição, debate. Assim a gente descobre porque é tão difícil lidar com eles, são apenas chucros estes que estão no pódio do poder central, ladeados por muitos outros, instalados em outros poderes. Infelizmente, inclusive na imprensa, muitas vezes a pesados soldos.

Agora a questão é duvidar das urnas eletrônicas, pregando o voto impresso, mesmo que se diga e repita a confiança nessa forma de voto. Não deve passar essa iniciativa. Tomara que não. Mas eles inventarão outras ameaças nesses meses que antecedem a eleição do ano que vem, e que infelizmente ainda não nos apresenta uma lista de candidatos fortes o bastante para recolocarem o país nos trilhos.

“Se urnas são confiáveis, dá um tapa na minha cara”, pede Jair Bolsonaro, ao duvidar do próprio sistema eleitoral que o elegeu, sem apresentar provas.  Será que vai ser preciso agendar? Pode entrar quantas vezes na fila?

Ele que está pedindo. Nós não ameaçamos, mas ainda creio que saberemos como nos defender.

___________________________________________________

MARLI - cgMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

___________________________________________

(se republicar, por favor, se possível, mantenha esses links):
Instagram: https://www.instagram.com/marligo/
No Twitter: @marligo
Blog Marli Gonçalves: www.marligo.wordpress.com
No Facebook: https://www.facebook.com/marli.goncalves

ARTIGO – Os Implicantes. Por Marli Gonçalves

Virou o ano e agora temos este, 2020, número lindo, espelhado, bom de escrever, desenhar, bissexto, pelo menos enquanto não vier alguém implicar com ele até por isso, pois se implicam com tudo. E se até o Papa se dá o direito de dar uma bifas por aí…

Com o que você implica? Todos nós andamos implicantes com alguma coisa ultimamente, repara só. Claro que nem preciso dizer, para começar, que implicar com o atual governo, desgoverno, sua equipe, as bobagens que proferem ou ameaçam, o próprio e seus filhotes, o pacotão todo, é quase que obrigatório, cidadania, vigilância, alarme ligado. Se até quem o botou lá agora está implicando. E se até o Papa…

Mas tem muita gente por aí implicando com coisas que absolutamente não lhes dizem respeito, nem de perto, e que não fazem parte nem diferença para as suas vidinhas normais. É até engraçado em alguns casos como os carolas nos lembram as “Senhoras de Santana” – lembram? Elas adoravam uma censura.

Mas isso pode ser perigosíssimo em tempos estranhos.

Antes que impliquem comigo, repito, admita: todos somos um pouco implicantes. Com mau humor a coisa piora, dobra, a gente até procura com o quê ou com quem implicar. Eu, por exemplo, ultimamente, assumo e vou dar um exemplo, ando completamente implicante – vejam só que bobagem – com homens que usam bermudas e meias ¾ puxadas, bem esticadas, até em cima, arrumadinhas. Tenho gana de pular na perna deles e baixar a meia. O que eu tenho a ver com isso? Nada. Eu bem sei. Mas dei de implicar com isso.  Nunca ataquei nenhuma perna, não se preocupem, que ainda não cheguei nesse nível. (ainda). Não ofereço riscos. Mas prometo tentar parar logo com essa implicância, que tenho muito mais o que fazer.

Justamente sobre isso que falava.  Sobre implicâncias também poderem desencadear violências, intolerâncias. Uma coisa é você implicar dentro da sua cabeça; outra, tentar com que outras pessoas impliquem também com a mesma coisa. Isso muito facilitado pela loucura das redes sociais. É o que está acontecendo no caso do filme do pessoal do Porta dos Fundos para a Netflix, que até onde sei não está obrigando ninguém a assistir – se estiver, me avisem correndo que não tenho ainda assinatura e vou aproveitar para maratonar as séries legais deles. Nessas primeiras horas do ano, já implicaram com o Sabonete Phebo porque custaria três reais; um pouco mais com a Greta Thunberg que adorariam ver ferver na Austrália e, pior, o Trump implicou de tal forma com o Irã que está nos pondo a todos à beira de uma Grande Guerra, fora o petróleo já custando barris de dólares.

Tem gente que ouviu cantar o galo num sei onde e fica piando igual sabiá no outro canto. Daí para a frente é um pulo: pedem censura, implicam com quem os artistas transam ou deixam de transar, quem com quem, implicam com os espetáculos que fazem e sobre o qual não têm a menor noção. Com o que comem ou deixam de comer, se engordam ou se estão magros. Não tô vendo gente implicando, quase mesmo que excomungando o próprio Papa? Ouvi até citarem a Lei Maria da Penha (!) porque ele teria dado as palmadas nas mãos de um mulher – e olha que ele já pediu desculpas – fez um mea-culpa – quase se atirou lá da sacada do Vaticano.

Agora também estou vendo uma novidade na área de implicância – a feita contra quem morreu, e que não poderá mesmo se defender a não ser puxando o pé quando os implicantes estiverem dormindo. Assombrando.

Cada dia mais temos tantas coisas sérias para nos preocupar e essas, sim, implicarão em tudo o que viveremos nesse 2020 em diante. Vamos tentar todos implicar menos com o que não nos diz respeito. Viver e deixar viver. Bem, claro, até que impliquem com a gente, que se defender é questão de honra.

2020! Feliz Dia de Reis!

________________________________________________

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

 

——————————-

ME ENCONTRE

 (se republicar, por favor, se possível, mantenha esses links):
https://www.youtube.com/c/MarliGon%C3%A7alvesjornalista
(marligoncalvesjornalista – o ç deixa o link assim)
https://www.facebook.com/BlogMarliGoncalves/
https://www.instagram.com/marligo/
—————————————————