ARTIGO – Halloween mundial e real. Por Marli Gonçalves

Vai ser – na verdade até já é e está estranho – muito estranho – viver o Halloween este ano, uma vez que as bruxas já estão soltas, os esqueletos se espalham, fantasmas e almas surgem das tumbas dos bombardeios e as crianças que vemos – sequestradas, reféns, feridas sob escombros, órfãs, pedem doces ou brincadeiras, ou qualquer coisa para comer e beber. Pedem para sobreviver.

E olhem que o Halloween é na sua origem uma celebração de culto aos mortos. Por aqui as coisas são de plástico, aos montes enchem as ruas do comércio popular. Abóboras, morcegos, esqueletos, fantasminhas e fantasmões, fantasias de monstros e bruxas competem há dias com os enfeites de Natal nas vitrines – outra data que também já vimos não será fácil com a sua terra e origem religiosa sitiada, abalada pelo medo.

Guerras são sempre fora de hora, nunca param, parece que jamais serão banidas de nosso vocabulário. Os humanos se alimentam delas, os senhores da guerra, fabricantes da morte, os líderes religiosos e dirigentes, os países ricos, as instituições mundiais que se enfraquecem, inábeis ou mesmo inúteis. Vivem da destruição, dos conflitos, das questões geopolíticas intrincadas. Na do momento já perdemos jovens brasileiros, famílias, e as crianças e mulheres claramente são suas principais vítimas. Milhões de pessoas em todo mundo estão apreensivas e só isso já afeta e faz muito mal, e por um longo tempo, à saúde mental de todos.

A guerra nos ocupa. Parece que tudo segue para um segundo plano após a sua eclosão. O meio ambiente, os esforços globais para transformar e salvar o que há de se salvar da natureza para evitar os grandes desastres climáticos, estes a forma que a natureza encontra para sinalizar os limites das destruições, desce o patamar. Tudo entra em suspensão. Não bastou a pandemia.

Incrível ser muito chamada de guerreira tendo verdadeiro horror às guerras. A minha guerra, como a de tantos de nós, guerrilhas diárias, é particular, quase solitária. Vivemos e agimos com elas. Mas guerras de países, de ideologias, de territórios, perturbam sobremaneira, como devem perturbar a todos os que ainda tem sentimentos, e captam estas, sim, uma forte energia coletiva, a da apreensão. Onde tudo vai dar? Onde cairão os respingos? Do que a humanidade ainda é capaz?

Que nossos Santos todos – de todas as fés, religiões, credos – nos protejam. Aos ateus, que apelem ao mais racional para todos juntos tentarmos brecar essa terrível escalada de violência. Óbvio que no momento o conflito no Oriente Médio é o que assistimos horrorizados, o inferno aberto pelos terroristas, com o fogo e o cheiro da morte alimentado na defesa raivosa. Mas aqui também estamos cobertos de guerras e fatos.

Senão o que mais é a luta de “comunidades” contra “comunidades” no Rio de Janeiro? Os confrontos entre traficantes e milicianos, e destes com policiais, todos armados até os dentes, prontos a perder suas balas no corpo de inocentes?

O que fazer nesse país de dimensões continentais extraordinárias quando, de um lado, rios secam, florestas queimam numa estiagem sem igual; de outro, cidades inteiras boiando debaixo da água, inundadas pelos rios que sobem fora de seus cursos.

São todos fatos históricos, índices históricos que se sobrepõem acelerados dia após dia. No meio de um tempo de pouca gentileza e muito individualismo. Embora sabendo o que o contrário significaria, e querendo ainda viver muito, ando bem cheia de presenciar a história e os seus fatos, sem doces ou brincadeiras. Muito menos fantasias.

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foto: @catherinekrulik

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Papai e Mamãe STF. Por Marli Gonçalves

Se bem que é mais papai, porque lá pelo Supremo Tribunal Federal a gente infelizmente só tem duas mamães, entre os onze que compõem a sua formação, Rosa Weber, a presidente que está para sair, obrigada, vai fazer 75 anos, e Cármen Lúcia.  São eles que vêm traçando os destinos não só da Nação, como também os nossos em muitas questões comportamentais.

papai e mamãe STF
FONTE: Migalhas

Que a gente acha até que um dia vai abrir o box do chuveiro e encontrar um deles determinando algo, pode ser, tanto têm feito. Que o STF tem passado do ponto em muitas coisas, criando encrencas, falando verdades e exagerando outras, nos garantindo, mas batendo nas nossas mãos com palmatórias, tentando regular muito mais do que as próprias pernas, e por isso sendo atacado pesadamente por extremistas dessa divisão burra – necessário dizer. Claro que é preciso estar atento e forte, porque muitas decisões que hoje aplaudimos efusivamente de alguma forma podem num futuro se voltar contra nós, se o tempo fechar. É preciso expressar isso claramente para o horror da esquerda. Que há limites, especialmente para o “mandou prender”, “mandou tirar do ar”, entre outros, que fique claro.

De outro lado, ultimamente eles parecem muito mais próximo de nós, pobres mortais, do que eram num passado ainda, pode-se até dizer, recente. O que se acelerou durante o governo passado, quando em inúmeras vezes nos salvaram das mãos da ignorância e do autoritarismo reacionário e conservador de extrema direita que ainda hoje teima em se criar e nos aborrecer aqui e ali. Um dos ministros, Alexandre de Moraes, o que mais tem se destacado, a ponto de ganhar apelido popular, Xandão, e memes engraçados, usados em conversas nas redes, para o bem e para o mal, de um lado e de outro das questões discutidas.

Só nessa semana tivemos duas notícias de lá daqueles lados onde tudo tem indo parar. A primeira é até ridícula que ainda estivesse sendo discutida em pleno agosto de 2023, a tal legítima defesa da honra, a tese utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra mulher buscando justificar o comportamento do acusado. Carimbada agora como inconstitucional, por unanimidade. Ufa!

A segunda notícia foi um voto até histórico do Xandão em um julgamento que ainda vai dar muito pano para a manga – seria ao fim uma questão de descriminalização da maconha, do uso recreativo da cannabis. O julgamento está em 4 favoráveis a zero. Já votaram a favor, mas com divergências pontuais, os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luis Roberto Barroso. Mamãe Rosa Weber suspendeu a votação por enquanto, isso porque Gilmar Mendes acha que a coisa deveria ser mais completa, para outras drogas. No caso, se discute o porte: quanto seria legal? Quanto seria tráfico? Segundo Xandão, além de apontar o racismo, mais negros que brancos presos, usuário seria “quem adquirir, guardar, tiver em depósito ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas”, bem explicadinho assim.  Gritaria geral, com esse Congresso esquisito querendo ser ele a instância a decidir. Falam até em plebiscito.

Enfim, o que vem ao caso é como tudo agora passa ali pelo plenário do STF, por conta disso mesmo tão destruído simbolicamente durante a raivosa invasão dos bolsonaristas em 8 de janeiro. Os ministros continuam mantendo presos muitas vezes quem roubou um bife, um shampoo. Mas saiu dali também a liberação de com quem casamos, uniões estáveis, homoafetivas, e logo estará sobre a mesa uma questão importantíssima, fundamentalmente ligada às mulheres: o aborto, e as condições para sua liberação, aliás leis e normas que há anos são soterradas pelos parlamentares que fogem do tema, literalmente, como o diabo foge da cruz, por envolver questões religiosas. Mais uma hipocrisia nacional tentando ocultar a realidade, assim como a questão da maconha.

Só que até há pouco estavam dez ministros votando, e chegou agora o 11º, o pálido e indecifrável Cristiano Zanin, indicado por Lula, e de forma bastante discutível.  Uma tristeza, por ser agora o mais jovem entre todos lá, aos 47 anos, já chegando como conservador, como se definem os que não querem mudar nada, nem mexer em vespeiros. Para ser aprovado nas sabatinas até respondeu a perguntas sobre casamento homoafetivo, legalização do aborto e descriminalização das drogas, se apegando à Constituição e no papel do Congresso, que conhecemos bem qual é na discussão dos temas. Ficou na corda bamba.

No país machista, de poder predominantemente masculino, onde as ministras de governo cantadas em verso e prosa estão sempre citadas primeiro em listas de trocáveis por acordos políticos, o que vai acontecer de agora em diante? Logo, em poucos meses, Rosa Weber sai, vão virar dez ministros de novo, e caberá a Lula mais uma indicação para completar o quadro tão irregular, já contando com os dois homens terrivelmente indicados por Bolsonaro.

Será o nome de mais um papai? Mais uma mamãe, uma mulher que tanta falta faz por ali? Precisamos ficar atentos a essa família que vive passeando em nossas casas.

___________________________________________________Marli

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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ARTIGO – Ídolos e o sobe e desce. Por Marli Gonçalves

Ídolos sobem aos céus e descem ao inferno, na morte e na vida. Sofremos como se fossem da nossa família quando se vão; razoável, porque devemos a eles muitos aspectos de nossa própria existência construída pela admiração, exemplos bons ou maus que imitamos. Suas vidas se misturaram às nossas.

Ídolos

Para quem já viveu um pouco mais, os últimos tempos têm sido de grandes perdas de ídolos importantes que acumulamos, acompanhamos durante décadas e aprendemos a admirar e seguir. Não como se segue hoje qualquer babaca em redes sociais, muito mais especulando fotos ou fofocas, opinando em suas redes, cancelando-os quando decepcionam, tentando nos meter em suas vidas amorosas, na forma como se vestem e até em suas opções políticas. E eles, sempre, tentando nos vender algum produto.

Ídolos eram muito mais inatingíveis, íamos aos seus shows adorá-los, tínhamos meras esperanças de um dia encontrá-los pelas ruas, conseguir um autógrafo. Quiçá uma foto, um beijo, um abraço. De alguns eram arrancados pedaços de roupa, fios de cabelo, tudo guardado em caixinhas inconfessáveis. Para outros até se arremessavam calcinhas, bichos de pelúcia. Tentávamos saber onde estavam, e ali nas portas de verdadeiros plantões encontrávamos outros “iguais” para trocar figurinhas durante a vigília. Lembro de muitas peripécias feitas por alguns ao longo dessa longa vida. Há uma magia nisso.

A morte de Rita Lee esta semana abalou geral e o incrível é perceber que foram lágrimas de todas as gerações e que foi o seu histórico revolucionário em costumes o mais recordado, especialmente como mulher à frente de seu tempo, corajosa e libertária, abrindo caminhos. Teve gente que chiou muito porque nessa memória apareceram também aspectos como o uso de drogas e álcool, bobagem, como se na hora da morte devesse ser apagada a verdadeira existência de quem durante tantos anos seguimos, inclusive praticando os mesmo erros muitas vezes. A expressão “sentar no próprio rabo” cai bem nos puritanos.

Ídolos de verdade não são perfeitos, e creio que por isso mesmo é que os adotamos, quanto mais próximos são de nós mesmos, de nossas imperfeições ou desejos. Não são santidades puras e cândidas, que essas encontramos em igrejas. Nos nossos ídolos procuramos coisas externas, os escolhemos para ver até onde vão dar seus hábitos, esquisitices. Eles acabam avançando em paralelo às nossas vidas. Se fazem músicas, são elas e suas letras que marcam indeléveis fatos de nossas histórias, e ao ouvi-las não há como deter a memória, a emoção, a alegria ou mesmo a tristeza desses momentos. Podem passar décadas e isso acontece. Rita Lee e sua carreira longeva é um dos maiores exemplos de alguém que caminhou ao nosso lado, da rebeldia total ao amor, da juventude ao envelhecimento, da saúde invejável a como conviveu serena com a terrível doença até o fim. Ela nos contou sempre tudo. Escreveu tudo. Disse tudo.

Mais: pareceu deixar preparados também todos os aspectos de sua partida. Até a escolha do genial lugar para o velório, o Planetário do Parque Ibirapuera, ali, entre o céu e as estrelas. Evitando assim, além de políticos hipócritas presentes, o horror dos velórios no frio branco do mármore do gigantesco salão da Assembleia Legislativa, onde normalmente são veladas as personalidades em São Paulo.

À esta altura já perdi a conta de quantos de meus ídolos já se mandaram; alguns até hoje teimo em não acreditar e fazer de conta que ainda estão por aqui. Porque eu estou por aqui e trago em mim muitas das coisas que neles admirei, segui, aprendi, fiz bobagem junto, cantarolei ou dancei.

Daí não poder deixar de dar uma boa reclamada sobre essa mania cada dia mais insuportável de que todo mundo é “influencer”, famosinho, “mito”, etc. etc. porque têm alguns “seguidores”, entre eles muitos até com milhares de robôs ou nomes fantasminhas comprados de alguma agência de marketing de influência.

Ídolo, minha gente, é coisa séria, não dá em árvore como essas novidades que aparecem (e também na mesma desaparecem) todos os dias postando o que comem, quem beijam, os seus escandalosos recebidinhos que elogiam sem qualquer cuidado, como se eles próprios usassem mesmo aquelas coisas. Fazem boca de pato, posam ao lado de carrões, barcos e aviões, andam por aí com fotógrafos a tiracolo que registram seus passos como se fossem naturais, mucamas e escravos os servindo e abanando seus calores.  Podem ser perigosos, especialmente quando tentam acreditar que são ídolos. Ou mitos. Milionários e de pés de barro.

Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa. Ídolo deixa história, é ícone. Mitos, a gente bem sabe o perigo que carregam.

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foto de @catherinekrulik

MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon).

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ARTIGO – Novelas sem fim. Por Marli Gonçalves

Tem umas novelas que nunca exatamente chegam ao fim. Se repetem, intermináveis. Os personagens reaparecem. Há os tais remakes. Os enredos se enroscam. Na política nacional vivemos um dos piores casos e parece que não tem jeito de a gente se livrar dos canastrões e canastrinhas

PROHIBIDO OLVIDAR - Recuerdos Reales Contados y Cantados en Castellano: TODOS LOS DÍAS LA MISMA HISTORIA (Parte 1): Yo veo telenovelas, y qué? (Dedicado a mi madre Norma)

Não há travessia que aguente. Não tem pantanal que se salve assim. Não tem terra nem paixão que resista. O Brasil virou uma novela interminável, sempre com a volta de personagens obtusos, suas falas truncadas e suas repetidas atuações abaixo de qualquer nível razoável. O último capítulo, aliás, se repete indefinidamente dia após dia e até já decoramos as falas de não fui eu, não sei de nada, isso é perseguição, as investigações serão rigorosas e providências serão tomadas. Pior é termos de reviver novamente todos os capítulos anteriores, no caso mais recente a revelação da falsificação dos comprovantes de vacina, os quatro anos do governo anterior e seus personagens entre caricatos, vilões, assistentes de mau caráter e atitudes insidiosas, tudo sempre envolvendo o ignóbil protagonista principal, seu núcleo e muitos figurantes fantasiados de patriotas. Todos ainda no palco, quando o que mais queríamos é que essas cortinas fossem cerradas, que tivéssemos o direito de esquecer deles e do mal que já fizeram.

Ah, bom, que bem sei que não é de hoje, com a reeleição corrente e possível, com o tal remake que repete a busca do sucesso da primeira versão sem levar em conta a passagem do tempo, as novas condições e  inclusive o envelhecimento dos atores principais, e até das suas ideias, textos e formatos. Fora os erros das primeiras edições nunca consertados ou revistos, muito menos assumidos e desculpados.

Tomo o Brasil como cenário, mas claro que as novelas também têm se repetindo no cenário internacional, muitas atravessando até séculos,  as guerras, desentendimentos por motivos religiosos, lutas pelo poder e territórios. E ainda  pandemias como a última que vivemos nos últimos três anos e dois meses que teve agora proclamada seu fim como emergência global, deixando o saldo subestimado de sete milhões de pessoas que deixaram de contribuir e continuar suas histórias –  e entre elas havia autores que ainda teriam muito a contribuir e se consagrar, em capítulos que não conheceremos, arrancados do roteiro da vida.

O Brasil é mesmo louco por novelas. Acompanha o desenrolar, participa como pode, comenta, aplaude e/ou cancela. As novelas lançam modas e comportamentos. Mesmo revivendo tempos antigos, de outras épocas, tentam trazer a discussão de temas importantes do passado, revistos, e da atualidade e sociedade; buscam a opinião pública, e pelo menos na tevê melhor se diversificam até o famoso último capítulo, disputado a preço de ouro pelas empresas e publicidade de seus produtos por conta da audiência que conseguem em seu desfecho. A partir daí certamente veremos os atores e atrizes novamente mais adiante, mas em outros papéis, outros personagens, construindo novas histórias, para os quais mudam aparência, estilo, cabelos e figurinos, e até seus sotaques. Ganham um tempinho para refrescar suas imagens, e até fazer com que esqueçamos seus inevitáveis fracassos de interpretação.Telenovela e Cultura Brasileira | Prof. Barbosa - Sociologia

Na vida real, não, e isso está ficando especialmente chato. Temos de relembrar os horrores, além de ver os mesmos personagens, vozes, aparência e cacoetes. Pior, se repetindo ao vivo, não são apenas flashbacks como os recursos que ajudam quem perdeu algum capítulo a entender as cenas.  Sempre são repetidas as cenas piores, as falas e subterfúgios, as reações às novas revelações que os trazem de novo às telas e noticiários. Imitando a ficção, quando perdem a audiência, tentam, rolam despenhadeiro abaixo tentando corrigir algumas cenas e tudo fica mais ainda sem pé nem cabeça.

A diferença é que quando é ficção a gente ri, corneta, desliga. Na real, como sempre, nessas novelas acabamos é envolvidos nas tramas, perturbados. Muitas vezes sem direito de nascer ou morrer, ao menos. Sem redenção, apenas percorrendo a perigosa Avenida Brasil.

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foto: @catherinekrulik

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ARTIGO – Paraísos artificiais. Por Marli Gonçalves

Nos paraísos artificiais que vivemos, não precisa nem de drogas para esses efeitos, alguns alucinógenos, outros nem tanto, reais de doer. Drogas – e das pesadas, batizadas, misturadas com coisa ruim – são essas que nos enfiam diariamente goela abaixo. Não pode, pode. Decreta-se. Publica no Diário Oficial e a gente aguenta. Tudo fora da ordem, na desordem, e seja lá mais o que for.

 paraisos artificiais

“Trabalhar que é bom, ninguém quer, né?” – meu pai sempre dizia isso quando via umas situações – e olha que elas não eram nem de perto parecidas com as que estamos vivendo em realidade, verso, prosa, metaverso, universo paralelo, supermercado, justiça e bem mais. Faço uma adaptação: “Protestar na rua contra tudo isso, ninguém quer, né?”.

Me desculpem os carnavalescos, mas se tem coisa que considero a mais idiota dos últimos tempos foi esse Carnaval artificial, fora de hora, coisa mais esquisita, decretada, assim como todos os acintes que vivenciamos. Não, não sou daquelas que detesta carnaval, gosto até dos bloquinhos, mas tudo tem hora; e a hora não era esta. Ficou uma coisa isolada, e olha que andei por aí algumas horas pelo menos para ver se encontrava alguém, podia até ser uma criancinha com algum adereço, fantasia, alguma pluminha, aquele ar folião. Talvez até mudasse de ideia se encontrasse blocos espontâneos, fossem pequenos grupinhos. Nada. Aqui em São Paulo a coisa realmente se concentra na avenida que não é mais avenida, o Sambódromo. Com alguns ecos. Onde “permitiram”. Não sei no Rio.

A mim, tudo soa falso. “Jeca”, até, se me permitem. Não é porque estamos saindo de dois anos do horror da pandemia que tinha de obrigatoriamente ter o que estão chamando de Carnaval, e Carnaval não é. Pior, vou dizer: estão tentando programar mais outro, para julho. Para satisfazer os blocos. E eu que sonhei tanto com o dia em que, livres do vírus (o que ainda não estamos), iríamos às ruas cantar e dançar – na minha cabeça haveria um dia que isso aconteceria. Não por decreto, como esse ministro da Saúde miserável anuncia, dando pauladas na pandemia que ainda mata mais de cem pessoas por dia, e no mundo fica no vai e volta.

Muito louco esse momento, todos os dias, coroados com o perigoso presidente sem noção fazendo graça/desgraça e troça com a Justiça, desafiando a Constituição, dando indulto para seu amigo ordinário e que, como ele, não tem apreço algum pela democracia. Não, o talzinho não foi injustiçado, nem martirizado, nem preso apenas por ter roubado um pedaço de carne ou shampoo; nem é miserável – essas coisas sociais, como  miséria e o desespero,  não incomodam esse amontoado que temos de chamar de governo  e que está louco para fechar o tempo e continuar nele. Também não é liberdade de expressão ameaçar ministros e suas famílias, convocar ataques, juntar gente para soltar fogos no Supremo Tribunal Federal. Acreditem, por favor, seja como for, com os que estão lá, questionáveis, egocêntricos, mandados, o STF ainda é o último poste em pé de proteção que temos.

Que 2022 seria um ano difícil, nenhuma novidade. Ano de eleições, de Copa do Mundo, de consequências pós-pandêmicas, de economia titubeante e até guerra longe que ecoa aqui. Mas insuportável até para nosso bem estar psicológico – como anda – não era esperado. Perigoso em seus caminhos políticos. Ainda temos de aguentar na tevê propaganda de partidos famosos por sua adesões seja ao que for disputando agora quem é mais… conservador! De doer. Um diz que é o verdadeiro; o outro diz que é o primeiro, sempre com um amontoado de afirmações desconexas e gente tão falsa quanto seus cabelos grudados e o apelo a ver quem é mais reacionário, quem atrai o que há de pior se criando e procriando celeremente fora do cercadinho.

Viva Baudelaire! Que preguiça! Estão tornando o paraíso Brasil um pesadelo tal que a nossa reação quando acordados vem sendo jogar a toalha.

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ARTIGO – Pescados e Pecados. Por Marli Gonçalves

Pronto, chegou. A santa Semana Santa começa agora, domingo, e vai até o outro, a Páscoa. Do jeito que as coisas andam, sem pescados, com pecados, e sem chocolate, tudo na hora da morte, sacrificados. Vai ter malhação do(s) Judas? Ideias de personagens não faltam. Tem muitas coisas em comum, ou para serem lembradas com o que vivemos hoje, e a celebração da Paixão de Cristo, sua morte e ressurreição

pescados e pecados

Conta a lenda que Jesus Cristo não aceitava o tipo de vida que seu povo levava, o governo cobrando altos impostos, riquezas extremas para uns e miséria para outros, e sua luta por justiça seria punida. Isso acaso lembra alguma coisa, algum lugar que conhece?

Momento sagrado que esse ano, ao contrário de todos, será subvertido ao bel prazer – normalmente tem Carnaval, 40 dias, quaresma, depois vem a celebração religiosa; agora é celebração, reza, reza, e depois, semana seguinte, Carnaval. Brasileiro não tem mesmo problema algum em mudar tradições. Vai por decreto. Piora em ano eleitoral, se pudessem distribuiriam ao povo saquinhos de bondades.

Mas mesmo agora nessa semana, ao que parece, ora, ora, muitas tradições serão afetadas. Por exemplo, na tradição católica, a Sexta-Feira Santa, a Sexta-Feira da Paixão, é dia reservado para a prática da abstinência. Uma tradição do catolicismo preconiza que não se coma nem carne vermelha nem frango nesse dia.

Silêncio. Não deveria conter ironia. Mas…já que faz tempo que esses itens sumiram ou escassearam na mesa dos brasileiros. Aí, é permitido se alimentar com peixe, ok? Claro que já viram os preços escalafobéticos, inclusive do desejado bacalhau, mas se não viram, deixe estar. Todos os noticiários repetirão as matérias sobre isso, sobre preços, sobre como comprá-los, verificar seus olhos brilhantes, suas guelras firmes, coisas assim. E que vivam as sardinhas que devem salvar alguns pratos!

Pessoas mais religiosas optam pelo jejum total, ou parcial, esse já disseminado na maioria da população que ou almoça ou janta, isso quando toma um café que vocês bem sabem quanto está custando. Tem o tal jejum intermitente que anda meio na moda para quem acha que assim emagrece. Ou se limpa de impurezas, coisa mais besta ainda. Má notícia: os médicos dizem que tal intermitência pode até fazer com que quem o faça engorde ainda mais!

Mas voltando à nossa celebração religiosa, feriado prolongado, que já deve estar assim de gente arrumando malas para cair fora para alguma gandaia. Não dá nem para ficar falando muito que, se não tem carne, não tem frango, não tem peixe, se opte por vegetais e frutas, produtos naturais. Não dá, inclusive, porque não quero arrumar encrenca com os pecuaristas que arrumaram treta até com o banco poderoso, e por muito menos que isso. Invocaram com o movimento dos vegetarianos que existe há anos – as “Segundas sem Carne”. Se bem que, em protesto, eles fizeram churrascos nas portas das agências, e vai que sobra uma picanha, uma maminha, uma costelinha… Mas ainda é melhor deixar para lá que encrencar com poderosos crucificou Jesus.

Desde menina, lembro, morria de medo de errar nesse dia e comer alguma carne – e sempre a gente ou esquece ou passa uma tentação pela frente. E claro que aqui ou ali quando se dá conta já está mastigando o proibido. A ideia do pecado, da punição, da culpa, sempre tão presente na religião. Oh, céus!

Aí chega o Sábado, de Aleluia. Dia de Malhação, que não é a da tevê. Malhação do Judas. Coisa até bem violenta. Tradição: juntar um monte gente para, divertindo-se, espancar, dar pauladas, arrastar por aí um boneco, espantalho, em geral primeiro dependurado, meio enforcado, do tamanho de um homem, forrado de serragem, trapos, qualquer coisa. Correr com ele, e depois tacar fogo, em geral ao meio dia. Aqui em São Paulo era até bem comum ver mais disso. Mas todo ano aparece algum, em algum lugar, algum bairro, já que sempre personifica, com placas ou máscaras, alguém malvisto do momento, políticos em geral, malfeitores do povo. Como disse, mais um ano em que a lista é enorme, difícil até de decidir, de candidatos. À eleição. E a virar Judas.

No domingo, os coelhinhos que se livraram de virar assado já que não temos o hábito de tê-los no cardápio normalmente, surgiriam como símbolo de renovação, ressurreição (quase virando lenda, dada a impossibilidade financeira e o oportunismo dos fabricantes), e trariam alegremente ovinhos de páscoa, de chocolate, para as crianças.

Como vemos, anda impossível até manter o mínimo de tradições. Pelo que parece a única mais garantida, que mudam até de data, ópio do povo sem pão, fora de época, é completamente pagã.

Assim vamos indo. De fantasia em fantasia.

E Evoé, Baco!

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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